Livro conta hist�ria do autismo, dos castigos f�sicos � neurodiversidade
Em 1965, a revista "Life", que tinha circula��o semanal de 8,5 milh�es de exemplares, publicou um ensaio fotogr�fico inimagin�vel nos dias de hoje. O mote das imagens: crian�as com autismo apanhando de cientistas –como forma de terapia.
Com o t�tulo "Gritos, Tapas e Amor", a reportagem detalhava os esfor�os supostamente bem-sucedidos do psic�logo de origem norueguesa Ole Ivar Lovaas (1927-2010), da Universidade da Calif�rnia em Los Angeles.
Lovaas e colegas asseguravam que m�todos empregados originalmente em experimentos com camundongos ou pombos (como as guloseimas usadas para "refor�ar" comportamentos positivos e os choques el�tricos que serviam para punir a��es indesej�veis) podiam ensinar meninos e meninas autistas a fazer contato visual com outras pessoas, a falar e a evitar as a��es repetitivas que caracterizam casos do transtorno.
As imagens da "Life" mostravam o rosto de um menino chorando no exato momento em que era esbofeteado, os espasmos causados por um choque el�trico no corpo de uma garota e, paradoxalmente, os pesquisadores abra�ando algumas das crian�as que se comportavam da maneira desejada ("refor�o positivo").
ESCALADA DA EMPATIA
A hist�ria acima � provavelmente a mais aterrorizante do livro "Outra Sintonia: A Hist�ria do Autismo", dos jornalistas americanos John Donvan e Caren Zucker, mas h� outros exemplos impressionantes nas mais de 600 p�ginas da obra.
Embora o objetivo do livro –cumprido, ali�s, com maestria– seja contar como a compreens�o a respeito desse multifacetado transtorno avan�ou desde a primeiro diagn�stico (durante a Segunda Guerra Mundial), tamb�m faz sentido l�-lo como uma esp�cie de escalada da empatia.
Vale dizer: a hist�ria do autismo � um espl�ndido estudo de caso sobre como as atitudes em rela��o � diversidade comportamental humana se metamorfosearam ao longo do �ltimo s�culo –sobre como, a duras penas, pessoas com o transtorno passaram a ser vistas como gente.
Na linha de frente da batalha estiveram, previsivelmente, as m�es e os pais de crian�as com autismo. O lado materno merece men��o especial porque, seguindo hip�teses de matriz freudiana sem a menor base emp�rica, muitos especialistas chegaram a atribuir o problema � chamada "m�e geladeira". Ou seja: crian�as se tornavam autistas por perceberam (conscientemente ou n�o) falta de amor de suas m�es, rezava a lenda.
A ideia foi formulada inicialmente pelo primeiro psiquiatra a diagnosticar o autismo, o austr�aco-americano Leo Kanner (1894-1981), e sua aceita��o acr�tica levou fam�lias j� desesperadas a encarar horas de terapia para curar a suposta frieza, sem efeito positivo sobre as crian�as afetadas. (Mais tarde, Kanner mudou de posi��o, embora negasse ter propagado o mito.)
Sintomaticamente, foi s� gra�as a um psic�logo que tamb�m era pai de um menino com autismo, o americano Bernard Rimland (1928-2006), que a tese da "m�e geladeira" foi derrubada –por meio da an�lise de uma montanha de dados comparativos, como conv�m � ci�ncia de verdade.
Tamb�m foram "pais do autismo" os principais respons�veis por pensar em terapias inovadoras e baseadas em evid�ncias, por organizar o financiamento para elas e mostrar ao p�blico a gravidade do transtorno.
'PIOR QUE A MORTE'
Ambos os autores possuem casos do problema na fam�lia, mas isso n�o significa que eles escamoteiem os momentos em que o preconceito e o desespero levaram pais e m�es a abandonar seus filhos. Especialmente dolorida � a hist�rias de Archie Casto, internado aos cinco anos de idade no Hospital Estadual Para Dementes de sua cidade na Virg�nia Ocidental (EUA), em 1919, seguindo recomenda��o m�dica –a m�e de Archie se limitou a explicar � irm� dele que "certas coisas s�o piores que a morte".
Outra Sintonia - A Hist�ria Do Autismo |
Caren Zucker |
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Casto perdeu todos os dentes da boca, todas as poucas palavras que um dia falara e nunca alcan�ou uma estatura superior � de uma crian�a de nove anos (morreu aos 83).
Nos �ltimos anos, o diagn�stico crescente de indiv�duos que possuem linguagem e intelecto normais ou at� de alto n�vel, �s vezes classificados como portadores da s�ndrome de Asperger (hoje considerada parte do chamado espectro autista), deu voz pr�pria aos que t�m o transtorno.
Alguns deles falam em "neurodiversidade" –a ideia de que o autismo � uma parte natural do repert�rio mental humano. As coisas mudam –�s vezes, at� para melhor.
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OUTRA SINTONIA: A HIST�RIA DO AUTISMO
Autores John Donvan e Caren Zucker
Editora Companhia das Letras
Tradu��o Luiz A. de Ara�jo
Pre�o R$ 39,90 (ebook); 664 p�gs.
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Linha do tempo
Hist�ria do autismo teve tese sobre 'psicopatas', eletrochoques e estudo despublicado sobre falso elo com vacinas
1933
Reprodu��o | ||
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Nasce o americano Donald Triplett, considerado o primeiro paciente a ser diagnosticado formalmente como autista
1943
Reprodu��o/ Wikipedia | ||
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Ap�s estudar o caso de Triplett e de outras dez crian�as, o psiquiatra austr�aco-americano Leo Kanner publica um relato cl�nico em que define o "autismo infantil" como uma s�ndrome espec�fica
1944
Reprodu��o/ Wikipedia |
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Hans Asperger, que escreveu sobre 'psicopatas autistas' |
O m�dico austr�aco Hans Asperger publica sua tese sobre os "psicopatas autistas", crian�as com intelig�ncia elevada e muitas dificuldades sociais. Dados ajudariam a definir a s�ndrome de Asperger, hoje considerada como parte do espectro do autismo
1964
O psic�logo Ivar Lovaas, da Universidade da Calif�rnia em Los Angeles, come�a a empregar choques el�tricos em experimentos com crian�as autistas, com o objetivo de impedir comportamentos de automutila��o entre elas
1966
A primeira estimativa detalhada da incid�ncia do problema � feita no Reino Unido pelo psic�logo Victor Lotter, que chega a um n�mero de 4,5 casos a cada grupo de 10 mil crian�as (hoje, o n�mero estimado � de 1 em 1.000)
1967
O psicanalista Bruno Bettelheim, da Universidade de Chicago, publica o livro "A Fortaleza Vazia", na qual argumenta que o autismo � causado por traumas desencadeados pelas m�es das crian�as –ideia completamente desacreditada hoje
1988
Reprodu��o | ||
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No filme "Rain Man", o ator Dustin Hoffman, no papel de um autista j� adulto, ajuda a criar uma imagem popular relativamente precisa do problema
1996
Reprodu��o/ Wikipedia | ||
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Surge o termo "neurodiversidade". Defendida por ativistas autistas altamente funcionais, a ideia � que os comportamentos ligados ao transtorno s�o parte da varia��o neurol�gica humana natural e n�o deveriam ser "curados"
1998
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Um estudo liderado pelo gastroenterologista brit�nico Andrew Wakefield, que sai na revista m�dica "Lancet", prop�e que poderia haver um elo entre a vacina MMR (sarampo, caxumba e rub�ola) e o surgimento do autismo. Erros, conflitos de interesse e an�lises aparentemente fraudulentos levariam � retra��o ("despublica��o") do trabalho em 2010
2013
Nova edi��o do DSM, b�blia da psiquiatria americana, oficializa o conceito de transtorno do espectro autista, defini��o que engloba desde manifesta��es mais incapacitantes do problema at� formas como a s�ndrome de Asperger
Livraria da Folha
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