Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
A liberdade e a luz de nosso tempo: as li��es da hist�ria e da literatura
De forma casual, como frequentemente me acontece, chegou �s minhas m�os um pequeno folheto fotocopiado das p�ginas finais de um livro sobre o qual eu n�o tinha refer�ncias: "Asistencia obligada (Un testimonio de las reuniones de la Uni�n de Escritores de la URSS)", obra de B. Yampolski e I. Konstantinovski. As p�ginas reproduzidas contam um epis�dio especialmente doloroso, inclu�do como ap�ndice do livro: os dias finais da vida do escritor sovi�tico Vassili Grossman, autor de "Vida e Destino", um dos maiores romances do s�culo 20.
"Um �ltimo Encontro com Vassili Grossman", escrito por Yampolski, conta em primeira pessoa as vicissitudes dos �ltimos anos de vida desse escritor, quando seu romance foi "represaliado", como se dizia naquele pa�s e �poca (anos 1960), depois de a pol�cia ter feito uma revista minuciosa de sua casa, de onde foram confiscados todos os pap�is e at� mesmo a fita gasta de sua velha m�quina de escrever. Desde ent�o at� sua morte, pouco depois, Grossman viveu em total estado de marginaliza��o, convertido em p�ria unicamente por fazer literatura e querer faz�-la com honestidade. Por isso, ademais, ele morreu sozinho e foi sepultado como se sepultam os suicidas. Com raz�o: pois, como diz o autor de "Um �ltimo Encontro...", Grossman "foi um suicida, escreveu o que quis e como quis e n�o sentiu desejo de confluir na turva corrente principal".
Renata Borges/Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress | ||
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Mas Vassili Grossman seria salvo do esquecimento por um manuscrito milagrosamente sobrevivente de "Vida e Destino", que, quando finalmente foi publicado, gerou nos leitores a como��o que n�o podia deixar de provocar. A literatura mostrou-se dessa vez mais forte que a pol�tica e, como costuma acontecer, mais permanente que ela.
O curioso � que para ler essas comoventes p�ginas fotocopiadas tive que suspender outra leitura inquietante e reveladora: a do livro (tamb�m chegado �s minhas m�os de forma inesperada) "O Fim do Homem Sovi�tico", possivelmente a mais importante obra da Nobel de Literatura Svetlana Aleksi�vitch. Essa grande reportagem, armada com as vozes de dezenas de sovi�ticos de todas as idades, tend�ncias e experi�ncias, conta as causas e consequ�ncias do desaparecimento da Uni�o de Rep�blicas Socialistas Sovi�ticas, em 1991, e relata acontecimentos anteriores e posteriores que acompanharam o processo de implos�o do grande imp�rio.
A convuls�o social provocada pela perestroika e a glasnost de Gorbatchov, a desintegra��o da URSS proclamada em 26 de dezembro de 1991 e a entrada em um novo momento hist�rico p�s-sovi�tico � vista e narrada por suas testemunhas pr�ximas, cada uma das quais arrasta uma hist�ria que muitas vezes remete aos tempos da portadora de esperan�a Revolu��o de Outubro de 1917 e percorre, entre outras, as experi�ncias da Segunda Guerra Mundial e dos campos de trabalho, os chamados gulags patenteados por St�lin, pelos quais passaram milhares de sovi�ticos. Os campos dos quais o "represaliado" Grossman s� se salvou por ter escrito seu romance quando St�lin j� havia morrido.
O que pode ser visto como uma esp�cie de "conjun��o c�smica" � que esses dois testemunhos, reveladores sobre o que podia ser a vida de um grande escritor na URSS e como viveram seus cidad�os os dias finais daquele Estado que come�ou sendo um sonho que parecia poss�vel concretizar-se na realidade (a sociedade de iguais), chegaram a mim justamente quando estava a ponto de completar-se um quarto de s�culo daquela que j� era a inevit�vel e mais que previs�vel desintegra��o daquele que foi o maior pa�s do mundo, um dos imp�rios mais poderosos que jamais existiram e o Estado moderno que criou os mecanismos se n�o mais refinados, pelo menos mais dr�sticos de controle do indiv�duo e da sociedade. Um colapso total para o qual n�o foi efetuado um �nico disparo: a URSS morreu matada por ela mesma, por sua nega��o do que deveria ter sido, e, por isso, seu suic�dio foi menos glorioso que o de Grossman.
Um e outro texto me serviram para entender melhor as causas do fracasso daquela utopia, concretizado nos dias finais de dezembro de 1991, um fato considerado por alguns como "a maior trag�dia hist�rica do s�culo 20". Mas o pr�prio Vassili Grossman, em "Vida e Destino", me deu uma pista importante quando refletiu sobre como os totalitarismos afetam a rela��o do homem e a liberdade. Em seu romance ele escreveu: "... o instinto de liberdade do homem � invenc�vel. Havia sido reprimido, mas existia. O homem condenado � escravid�o se torna escravo por necessidade, mas n�o por natureza. (...) A aspira��o do homem � liberdade � invenc�vel; pode ser esmagada, mas n�o aniquilada. O totalitarismo n�o pode renunciar � viol�ncia (...), direta ou mascarada (...). O homem n�o renuncia � liberdade por vontade pr�pria. Nessa conclus�o se encontra a luz de nossos tempos, a luz do futuro."
H� ocasi�es em que a hist�ria e a literatura s�o �teis para algo mais que nos informar, ilustrar e provocar prazer est�tico. �s vezes servem tamb�m para nos ensinar li��es. Depende de n�s mesmos se somos capazes de tirar alguma utilidade dessa aprendizagem poss�vel e, desde nossos tempos, t�o necessitados de uma utopia libertadora e justiceira, recordar qual � a luz do futuro em que acreditava Vassili Grossman.
Tradu��o de CLARA ALLAIN
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