Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Se Trump escolher a hostilidade, o sofrimento ser� do povo cubano
Enquanto em Cuba era celebrada a homenagem p�stuma a Fidel Castro, � qual compareceram presidentes, l�deres pol�ticos e personalidades de todo o mundo para prestar um �ltimo tributo ao l�der, uma chamada da CNN na Espanha advertia que o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, prometia rever o curso das atuais rela��es de seu pa�s com a vizinha ilha do Caribe e possivelmente reverter o processo de aproxima��o iniciado em 17 de dezembro de 2014 pelos presidentes Barack Obama e Ra�l Castro.
Como � sabido, as conversa��es iniciadas a partir daquela data levaram ao restabelecimento das rela��es diplom�ticas entre Washington e Havana, depois de quase 55 anos de uma ruptura definida nos dias mais decisivos da Guerra Fria.
Nos meses posteriores, a conex�o se intensificou com uma s�rie de decretos presidenciais norte-americanos que propiciam o fortalecimento dessas rela��es recuperadas.
Mas agora as reiteradas declara��es de Trump sobre a pol�tica que ele pretende seguir com Cuba, mais veementes quando a morte de Fidel acaba de ocorrer, n�o permitem prever uma melhora na sa�de dessas rela��es.
Para come�ar, um retrocesso em rela��o ao estado atual das coisas seria uma repeti��o do mesmo erro de c�lculo de pol�tico de pensar que uma postura de hostilidade norte-americana desestabilizaria o sistema cubano. J� se sabe que Cuba resistiu a tudo: desde as tens�es da Guerra Fria at� o ainda vigente embargo decretado pelos Estados Unidos em 1962.
Renata Borges/Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Anos mais tarde, ela sobreviveu � queda de seus principais arrimos econ�micos e pol�ticos, com a implos�o do campo socialista na Europa e o desaparecimento da URSS, em 1991, que colocaram o pa�s para l� da margem da pen�ria econ�mica.
A situa��o daqueles anos de car�ncias supremas tornou-se ainda mais dura e dif�cil de superar com o recrudescimento do velho instrumento do embargo, gra�as �s leis Torricelli, de 1992, e Helms-Burton, de 1996, que conferiram car�ter extraterritorial �s san��es econ�micas que o pa�s j� sofria. Mas o sistema cubano assimilou esses golpes, e a maior cota de sacrif�cio e sofrimento (que chegou a incluir a fome) foi vivida pela popula��o cubana, as pessoas, os cidad�os a p�.
Sem que essas condi��es externas tivessem mudado, perto do final da d�cada de 1990 um per�odo de recupera��o come�ou para Cuba, e a vida se normalizou –uma normalidade tensa, � verdade, na qual continuam a existir car�ncias–sem que mudassem essencialmente a estrutura pol�tica do pa�s ou sua lideran�a, nem muito menos a pol�tica dos Estados Unidos em rela��o � ilha, que tornou-se inclusive mais agressiva sob os mandatos presidenciais de Bush Jr.
Quando em 2008 Fidel se viu obrigado a afastar-se definitivamente do poder por raz�es de sa�de, Ra�l Castro empreendeu mudan�as importantes que afetaram a estrutura social cubana. � poss�vel que fora da ilha n�o se tenha a medida exata do que significaram essas transforma��es, mas entre elas mencionarei uma que modificou, e muito, a vida dos cidad�os cubanos: a possibilidade de viajar livremente, que antes n�o existia.
Mas justamente quando h� a maior distens�o entre Cuba e Estados Unidos, Trump lan�a uma exig�ncia: a ilha deve mudar seu sistema pol�tico ou ele vai rever a posi��o norte-americana em rela��o a ela. E o diz como se fosse um ultimato.
Como Trump � obcecado com a quest�o dos imigrantes, talvez as decis�es em rela��o � ilha que venha a implementar afetem, por exemplo, as condi��es de que desfrutam os migrantes cubanos.
Talvez at� procure revogar a Lei de Ajuste Cubano e a pol�tica de p�s secos/p�s molhados, que garante aos cidad�os da ilha que chegam aos Estados Unidos a resid�ncia quase imediata nesse pa�s, um privil�gio que vem facilitando a entrada de cubanos na Am�rica do Norte, permitindo sua inser��o e, em grande medida, at� mesmo o sucesso da comunidade cubano-americana.
A possibilidade de um levantamento total ou parcial do embargo tamb�m entraria em um per�odo de imobilidade, n�o obstante o fato de, na mais recente vota��o nas Na��es Unidas sobre o pedido cubano de revoga��o do embargo, a delega��o de Washington ter se abstido de apoiar sua pr�pria pol�tica, pela primeira vez em v�rias d�cadas.
Com uma decis�o fundamentalista cada vez mais previs�vel, Trump n�o faria mais do que dar continuidade a uma pol�tica que o presidente Obama tentou desmontar por consider�-la historicamente fracassada. E Obama advertiu: se existe um caminho para fazer com que o sistema cubano mude, n�o � o mesmo que n�o levou a lugar nenhum. Ou que at� contribuiu para a manuten��o da estrutura pol�tica cubana, mesmo sob as condi��es econ�micas mais dif�ceis.
Chama a aten��o, no m�nimo, que, enquanto Trump lan�a suas exig�ncias, o presidente do M�xico, Enrique Pe�a Nieto, tenha comparecido a Cuba, juntamente com dezenas de l�deres de todos os cantos do mundo, em um gesto de proximidade com Havana. Essa convocat�ria universal maci�a, somada � aus�ncia de uma delega��o oficial norte-americana, s�o sinais de rea��es pol�ticas que podem ser lidas com facilidade e vistas como ind�cios do que pode acontecer no futuro.
As rela��es entre os dois pa�ses voltar�o � situa��o anterior? � poss�vel que sim. Com Trump, ao que parece, tudo pode acontecer. S� que Cuba j� viveu essa experi�ncia, sua popula��o j� a sofreu, e seu sistema n�o mudou. O ultimato de Trump dificilmente ter� o efeito procurado, enquanto uma continuidade da pol�tica iniciada por Obama poderia realizar alguma coisa. O mais triste � que um retorno � hostilidade seria sofrido sobretudo pelo povo cubano, que seria o grande perdedor devido aos efeitos de uma cegueira hist�rica continuada.
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