Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Poetas s�o recebidos em C�rdoba com a poesia derramada pelas ruas
A Espanha foi um dos lugares do mundo onde o pensamento anarquista deitou ra�zes mais fundas. Como � sabido, o anarquismo � um movimento social, pol�tico e filos�fico que busca (ou ser� que j� devemos dizer que buscava?) a cria��o de uma sociedade sem classes na qual n�o existam estruturas de controle como o Estado e o governo.
Durante quase todo este ano, que vai entrando em sua reta final, a Espanha vem sendo um pa�s onde n�o existe governo, embora as estruturas do Estado tenham continuado a funcionar. E n�o exatamente devido a alguma revolu��o anarquista chegada ao presente desde os tempos passados da terr�vel Guerra Civil que dilacerou o pa�s e o atirou nas m�os da ditadura franquista.
O maltratado sistema pol�tico espanhol e a situa��o interna da na��o fizeram com que nenhum dos partidos que disputam o poder tenha podido formar um governo. Depois de irem �s urnas duas vezes, os espanh�is v�o ter que retornar em dezembro para checar se finalmente algum dos candidatos na disputa consegue alcan�ar os votos necess�rios para chefiar o governo.
Renata Borges/Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress | ||
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Essa situa��o poderia nos levar a imaginar uma conjuntura de caos no pa�s. Entretanto, nos meses em que os espanh�is v�m vivendo sem governo, sua economia deprimida melhorou, o desemprego caiu v�rios pontos percentuais, o n�mero de turistas que visitaram o pa�s anda por volta de 70 milh�es e as principais atividades sociais, culturais e civis v�m sendo realizadas com normalidade quase total –ou com normalidade absoluta, para um pa�s que n�o tem governo!
A estranha conjuntura pol�tica espanhola �, em grande medida, a express�o de um contexto em que as for�as pol�ticas tradicionais entraram em crise de esgotamento, e o simples nascimento de novos partidos situados de um ou outro lado do diapas�o ideol�gico alterou o equil�brio que se tinha apoiado sobre o bipartidarismo.
Essa nova balan�a de possibilidades pol�ticas, al�m de ser necess�ria, parecia imprescind�vel para uma sociedade maltratada pela crise econ�mica e pelas m�s gest�es administrativas contaminadas pela corrup��o e o compadrio.
No in�cio do m�s de outubro, esse panorama todo ficou ainda mais esdr�xulo, com a crise interna do partido de centro-esquerda, que durante anos liderou esse lado do arco pol�tico. Sem a capacidade de aliar-se a seus vizinhos da esquerda, o chamado Partido Socialista Oper�rio Espanhol est� dando seus gritos finais, pelo menos da forma em que existiu desde o retorno da democracia � Espanha.
O resultado mais lament�vel dessa crise � que, diante das diferen�as internas inconcili�veis com que a esquerda costuma se manifestar, abre-se o caminho para a vit�ria da direita, que pode ter pela frente muitos anos de governo na Espanha.
Ou seja, o pa�s voltar� a ter governo e ser� um governo de direita, com sua imprescind�vel corte neoliberal e sua tend�ncia ao corte de benef�cios e conquistas sociais e cidad�s, que j� est� sendo praticado.
Entretanto, enquanto tudo isso acontece na esfera da pol�tica, a vida continua, por sorte... E tive a ocasi�o de comprov�-lo da melhor maneira que se poderia imaginar: constatando que a poesia, a velha e maltratada, vilipendiada e pouco mercantil poesia, pode continuar a ser uma manifesta��o que se introduza no cotidiano das pessoas e lhes leve um pouco da melhor beleza.
H� 13 anos, a cidade andaluza de C�rdoba, uma das mais belas e emblem�ticas do mundo por ter sido fruto do encontro e s�ntese de culturas muito diversas, organiza o Festival Cosmopo�tica, que, por duas semanas, toma conta das ruas da cidade e a converte em um verdadeiro poema vivo.
Sob um lema que expressa uma verdade profunda –"Ningu�m pode escapar da poesia"–, poetas de todo o mundo v�o a C�rdoba, e a cidade os recebe com a poesia derramada pelas ruas: nas pra�as, nas feiras, nas escolas, nos bares. At� as badaladas dos rel�gios repetem versos ao tocar as horas. A silhueta do homem de chap�u do pintor Magritte convida as pessoas � poesia, e homenagens s�o feitas a Tzara, ao dada�smo, ao surrealismo. Por alguns dias, ou pelo menos algumas horas, as pessoas se esquecem da pol�tica e se deixam envolver por versos e can��es.
E, embora a triste realidade do mundo de hoje seja que nem na Espanha, nem no Brasil, nem em Cuba, nem nos Estados Unidos, ningu�m pode escapar da pol�tica, alguns cordoveses obstinados abrem uma jaula muito mais am�vel para convidar a todos a conviver com uma das mais belas cria��es humanas por duas semanas e para nos recordar que, apesar do que procuram nos inculcar, podemos viver sem governo, mas n�o sem poesia.
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