Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Mem�ria partida, mem�rias perdidas
Cuba � uma na��o obcecada por sua mem�ria. � uma rea��o normal para um pa�s com sua mem�ria alterada. Por isso, tampouco � por acaso que, at� onde se consegue avan�ar mais ao abordar esse conflito espinhoso, h� a convic��o de que o esquecimento n�o � admiss�vel, embora talvez (sem apagar o rol das queixas) seja poss�vel alcan�ar o perd�o. Por�m, lamentavelmente, �s vezes nem sequer isso.
As d�cadas transcorridas desde o triunfo revolucion�rio de 1959 provocaram uma fratura da mem�ria, como costuma acontecer em todos os processos pol�tico-sociais dessa natureza. Do passado assimilaram-se de prefer�ncia os marcos que conduziam ao presente e o validavam, enquanto se enterraram fatos e nomes prescind�veis ou inc�modos para esse fim. De maneira semelhante, a comunidade cubana que foi crescendo na di�spora usava o passado para fundamentar suas atitudes e desconhecia o presente, o negava, considerando-o uma aberra��o hist�rica, algo que tamb�m constitu�a uma mutila��o da mem�ria coletiva.
Se nos �ltimos anos a diminui��o das tens�es pol�ticas, somada a certas transforma��es econ�micas e � passagem desgastante e inadi�vel do tempo, permitiu alguma recupera��o da mem�ria passada e presente da na��o, ainda hoje o processo � irrealiz�vel em sua totalidade complexa, devido � sobreviv�ncia de velhos condicionamentos pol�ticos ainda atuantes que, por necessidade ou conveni�ncia, se negam a desaparecer.
Algumas semanas atr�s, quando o presidente Barack Obama visitou Cuba, o tema da mem�ria e do esquecimento voltou a esquentar, sem que muitos cubanos sentissem alguns de seus efeitos –devido � desmem�ria. � que justamente nesses dias aconteceu no pa�s algo que revela como est� quebrada a mem�ria dos cubanos de hoje. Esse fato paradigm�tico aconteceu durante a abertura de uma partida de beisebol entre um time do Norte e outro da ilha, um desafio cuja simb�lica primeira bola foi lan�ada por um dos maiores jogadores de beisebol cubanos de todos os tempos –que 90% de seus compatriotas que vivem na ilha nunca tinham visto jogar e de quem nem sequer tinham ouvido falar, porque ele desenvolveu quase toda sua carreira em circuitos profissionais estrangeiros. Como Messi, como Neymar, como Cristiano Ronaldo, �dolos nacionais da Argentina, do Brasil e de Portugal.
Parece absurdo, mas � dolorosamente real. Figuras como esse atleta n�o existiram nos meios de comunica��o oficiais cubanos e, por isso, tampouco existiram na mem�ria coletiva do pa�s. Esse caso se repetiu � saciedade com outros atletas, com m�sicos, escritores, pintores, cientistas que, com ou sem posi��es pol�ticas adversas ao sistema cubano, pelo fato de realizarem seu trabalho fora da ilha foram ignorados pela hist�ria escrita dentro do �mbito geogr�fico da na��o e, desse modo, despojados de sua capacidade de engrossar a mem�ria coletiva do pa�s. Como se a geografia ou as op��es pessoais determinassem o pertencimento.
Fora do pa�s, os ide�logos e porta-vozes da comunidade cubana praticaram uma pol�tica bastante semelhante, mas de signo oposto: para eles apenas � v�lido e louv�vel o que se faz fora das costas insulares, enquanto a obra realizada na ilha s� alcan�a seu verdadeiro valor quando seu protagonista abandona a na��o e engrossa as fileiras dessa di�spora, passando ent�o a ser um deles.
T�o lament�veis quanto ou ainda mais, por acumularem a desmem�ria, s�o as estrat�gias de invisibiliza��o que se praticam sobre indiv�duos isolados ou contra movimentos vistos como reais, potenciais ou supostos oponentes. O manto de sil�ncio estendido contra os heterodoxos tem sido historicamente uma atitude praticada pelos ortodoxos –sempre se poderia rever o an�tema lan�ado contra Baruch Spinoza pelos l�deres religiosos de sua comunidade– que, em nome do bem comum, se outorgam o direito de decretar o que � salv�vel, conhec�vel, memor�vel.
Uma das grandes tarefas da sociedade cubana consiste precisamente, a meu ver, na recupera��o, unifica��o e conserva��o de uma mem�ria nacional abalada por decis�es pol�ticas que decretaram esquecimentos, negaram presen�as e inclusive exist�ncias e que, a partir de seu poder quase on�modo, taparam e tapam, ainda hoje, vozes, gestos, fatos e atos que por seu valor e pertencimento deveriam entrar no territ�rio superior, permanente e necess�rio da mem�ria nacional.
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