Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Primavera em Paris
Cheguei a Paris no momento em que a primavera explodiu, como dizem. A tamb�m chamada Cidade Luz nos recebeu como costuma fazer, inclusive na primavera: com um c�u encoberto que parece pairar sobre nossas cabe�as e uma chuva intermitente que quase impossibilita um dos exerc�cios mais agrad�veis que a cidade nos oferece: caminhar por ela, sobretudo � noite.
Nestes tempos em que as flores brotam no inverno e os lagos gelam no ver�o, a anormalidade normal do clima vem somar-se ao ritmo de uma vida citadina que tamb�m parece normal.
Os caf�s e brasseries parisienses, sobretudo os do Quartier Latin, est�o lotados –cada vez mais, com turistas chineses–, as lojas do centro procuram vender seus produtos em valores que superam minha capacidade de espanto (€ 700 por uma jaqueta muito simples que um chin�s s� compraria para mostrar mais tarde que esteve em Paris), as pessoas andam como se estivessem com pressa (mesmo que n�o estejam), e as mulheres s�o capazes de usar esses chap�us muitas vezes rid�culos que s� s�o elegantes quando usados em Paris.
Uma fila intermin�vel se estende diante do Museu do Louvre (mais chineses), o Sena corre escuro e silencioso como eterna testemunha de tanta hist�ria, e o esp�rito de cultura da cidade est� em toda parte, se bem que, para mim, seu ref�gio favorito sempre tenham sido os caf�s de Saint-Germain-des-Pr�s, onde pessoas como Jean-Paul Sartre e sua mulher, Simone de Beauvoir, em cuja honra nos demos de presente um jantar no Les Deux Magots, costumavam ir tomar alguns tragos, filosofar e tentar arrumar o mundo.
Enfim, Paris continua sendo Paris.
Mas, por baixo dessa imagem sempre bela e exultante, mesmo com chuva e c�u fechado, Paris � uma cidade ferida. As cicatrizes dos atentados de novembro passado, que espalharam o terror e o desespero na capital francesa, ainda acompanham seus habitantes, que falam do que viveram naqueles dias infernais para tentar exorcizar a lembran�a. E n�o ser� f�cil, nem sequer para Paris, recuperar-se da vis�o de tanta viol�ncia e de seu resultado pretendido: o medo.
O pior do drama criado pelos ataques terroristas vem sendo conviver com a certeza corrosiva de que o horror pode retornar a qualquer momento e que, como a famosa roleta russa, pode atingir qualquer pessoa, em qualquer lugar. Porque n�o se trata de uma disputa frontal com um inimigo vis�vel. N�o � uma dessas guerras em que se ganha, se perde ou se assina um armist�cio e se levanta uma bandeira, inclusive a da paz –uma guerra em que � poss�vel at� o di�logo, o entendimento "in extremis" alcan�ado como resultado da viol�ncia.
A guerra do fundamentalismo � escura, s�rdida e n�o tem rosto, ou, nesse caso, tem muitos rostos. Em um pa�s onde vivem milh�es de pessoas origin�rias dos pa�ses do norte da �frica, isl�micas ou n�o, mas cultural e etnicamente ligadas a seus locais de origem, identificar o inimigo potencial � imposs�vel –ou poss�vel demais. E assim se geram os mais lament�veis efeitos colaterais, como a xenofobia e o boom das teorias de extrema direita sobre a emigra��o e a conviv�ncia cultural.
� precisamente esse um dos objetivos dos ataques terroristas, que se alimentam da cria��o e explora��o do �dio, um caldo de cultivo de mais terrorismo e horror.
Contudo, a despeito do medo e das cicatrizes, inclusive as vis�veis, os parisienses fazem o poss�vel para salvar seu esp�rito e sua alegria de viver, mesmo sob esse c�u fechado.
Meu colega e amigo Philippe La�on, um dos sobreviventes do ataque � revista "Charlie Hebdo", veio me ver e me entrevistar. Em seu rosto ainda deformado est� a marca mais vis�vel do que ele viveu naquela manh�. Em sua mente, a mem�ria do apocalipse. Mas em sua for�a de vontade e sua �nsia de viver, ler, amar est� a �nica resposta poss�vel ao terrorismo.
O fato de Philippe La�on continuar a fazer jornalismo � mais importante que sofrer o clima horroroso da cidade mais bela do mundo, inclusive na primavera.
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