Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Havana, formosa em sua decrepitude
Pessoas de todas as partes do mundo chegam todos os dias a Havana com a inten��o, entre outras poss�veis, de penetrar em um parque tem�tico do urbanismo ecl�tico, que, como vantagem adicional, possui o ingrediente de ser habitado por pessoas reais, com vidas reais.
A capital cubana, que nasceu e cresceu gra�as � geografia –a b�n��o de uma ba�a protetora diante da corrente e do golfo do M�xico–, foi at� o s�culo 18 uma cidade mais marinheira e militar que civil ou religiosa. Seu primeiro grande crescimento urbano se deu no s�culo 19, quando, ainda col�nia espanhola, a ilha desfrutou de um crescimento econ�mico impressionante. Pal�cios burgueses, teatros, avenidas e pra�as cresceram ent�o, extrapolando o velho recinto murado, e converteram Havana numa cidade esplendorosa.
J� no s�culo 20, os momentos de prosperidade econ�mica contribu�ram para lhe dar sua fisionomia definitiva, num processo de expans�o urbana que deu origem aos novos bairros aristocr�ticos e de classe m�dia em que hoje vive a maior parte da popula��o havanesa.
Os paulatinos movimentos expansivos da cidade foram deixando para tr�s, como obst�culos do passado, os lugares que iam perdendo a prefer�ncia dos cidad�os mais influentes. Mas sua perman�ncia urbana tornou-se necess�ria para abrigar a grande massa prolet�ria, os migrantes nacionais e estrangeiros que ocuparam essas �reas que ficaram desfavorecidas e entre as quais se encontrava, justamente, a zona mais hist�rica da cidade, a chamada Havana Velha.
As d�cadas do per�odo revolucion�rio iniciado em 1959 que sacudiram a sociedade cubana at� suas bases mudaram muito pouco essa estrutura f�sica que a cidade tinha alcan�ado. Pelo contr�rio –entre car�ncias econ�micas e o descaso governamental e privado, a cidade de Havana n�o apenas ficou parada no tempo e no espa�o como foi caindo nesse marasmo de abandono em que se encontrava na d�cada de 1990, quando chegou a grande crise econ�mica do momento p�s-sovi�tico e, como ele, a impossibilidade de melhorar o estado construtivo de uma cidade envelhecida que foi se povoando de ru�nas, desastres urban�sticos e ruas esburacadas.
Em parte gra�as a esse abandono, a Havana Velha, diferentemente de outros bairros hist�ricos, conservou sua cara antiga e, devido ao empenho do Escrit�rio do Historiador da Cidade, iniciou um quarto de s�culo atr�s um processo de recupera��o que, apesar de parcial, conseguiu resgatar o encanto de uma parte da cidade colonial e preservar suas constru��es mais hist�ricas e simb�licas, conferindo-lhes, al�m disso, utilidade e visibilidade. Hoje a Havana colonial � uma importante atra��o tur�stica internacional.
Mas o resto da cidade, excetuando obras e zonas muito pontuais, n�o teve a mesma sorte. A prolongada falta de investimentos em sua melhoria cobrou e est� cobrando o pre�o de uma deteriora��o crescente que se torna especialmente dram�tica em um pa�s cujo d�ficit habitacional � um de seus males sociais cr�nicos.
O panorama urbano de Havana se complicou, al�m disso, devido a uma pol�tica muito vulner�vel de organiza��o urban�stica que permitiu a deforma��o profunda do car�ter de certas �reas da capital cubana e o surgimento de modifica��es estruturais e decorativas que fizeram do tradicional esp�rito ecl�tico da cidade (dona, segundo o escritor Alejo Carpentier, "do estilo das coisas que n�o t�m estilo") um emaranhado de possibilidades em que o feio e o improvisado ergueram seu imp�rio.
Assim, hoje Havana, ou grande parte de Havana, � uma cidade amea�ada pelas ru�nas. Com ruas estragadas, rede de esgotos obsoleta e muitas, muitas constru��es em mau estado ou em condi��es de "est�tica milagrosa" (porque s� n�o ca�ram por milagre), a cidade clama por uma invers�o grande que a salve e, sobretudo, permita uma vida familiar mais digna para centenas de milhares de pessoas.
Somam-se a essas circunst�ncias existentes na Havana "vis�vel" as que se vivem na Havana "invis�vel", aquela que foi tomando conta da periferia urbana onde nasceram diversos assentamentos emergentes, muitos deles sem rede de �gua ou esgotos, formada por constru��es erguidas com qualquer material que possa servir de paredes e telhado. Esses bairros, onde vivem sobretudo pessoas vindas da parte oriental da ilha (os chamados "palestinos"), imagino que n�o devem figurar em nenhum plano urban�stico, raz�o pela qual n�o devem receber invers�es –apesar de que ali tamb�m vivem cubanos e cubanas, velhos e crian�as.
Mas acontece que no calor do boom de Cuba, e em especial de Havana como destino tur�stico, e sob o efeito do novo estado das rela��es entre a ilha e os Estados Unidos, Havana parece estar no centro de interesse de muitos investidores. Esses investidores potenciais sabem que a capital cubana � uma cidade atraente, hist�rica, singular (esse parque tem�tico que mencionei antes), mas onde praticamente tudo est� por fazer. Porque Havana precisa de uma renova��o de sua infraestrutura; a cidade clama por hot�is e outros alojamentos; ela precisa de uma remodela��o de seu litoral, ainda mais quando o porto comercial foi transferido para Mariel e a ba�a de Havana ficar� como raia tur�stica e esportiva.
Como Havana vai assimilar esse vendaval t�o necess�rio, eu diria at� inevit�vel, que assoma no horizonte? Que pol�tica econ�mica e urban�stica aplicar: a tradicional, caracterizada pelo controle e os freios, ou a da abertura... e do descontrole? A ru�na ou o a�o e o vidro? Algum meio termo?
Os dilemas s�o dram�ticos, e os urbanistas e arquitetos cubanos t�m consci�ncia disso. Havana n�o pode continuar em seu estado atual, porque sua doen�a � demasiado grave. Se bem que, como diz o refr�o cubano, �s vezes "o rem�dio � pior que o mal". S� que, para salvar a cidade, � preciso salvar primeiro o bem-estar de seus habitantes, e entre uma e outra exig�ncia pode estar a alternativa do diabo... e o fim dessa Havana, formosa em sua decrepitude, que ainda hoje podemos ver... sofrer.
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