Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Um esfor�o t�o grande para nada
O consumo de cultura em Cuba sempre foi um fen�meno pol�mico e complexo. As eternas dificuldades econ�micas da estrutura socialista da ilha raramente possibilitaram que se gastassem os recursos necess�rios para levar ao cidad�o as cria��es art�sticas mais recentes e reconhecidas consumidas no resto do mundo (pelo menos no resto do mundo com possibilidades de faz�-lo).
Mesmo assim, gra�as a programas culturais e educativos, o espectador cubano teve oportunidade de consumir cultura de alta qualidade oferecida pelas institui��es oficiais. Nos �ltimos tempos, por vias alternativas, tamb�m circularam as mais recentes s�ries da Netflix ou HBO, os �ltimos filmes de Alejandro Gonz�lez I��rritu e Woody Allen, e o PDF pirata de algum livro rec�m-chegado ao mercado.
� algo diferente –ao longo de quase seis d�cadas, as institui��es pol�ticas cubanas decidiram o que o cidad�o deve consumir culturalmente.
Assim, desde as proibi��es ou barreiras ao rock e beat nos anos 1960 at� a decis�o de n�o publicar autores cubanos que vivem no ex�lio, sempre existiu um mecanismo institucional que pensa na melhor educa��o ideol�gica, cultural e art�stica do cidad�o, desestimulando ou censurando o que algu�m com poder decide ser prejudicial ou impr�prio.
Dessa �ltima lista constam desde livros a filmes, de partidas de beisebol profissional a shows de TV de produ��o local. � o que parece ter acontecido com alguns epis�dios do programa "Vivir del Cuento", com�dia de costumes que tem a maior audi�ncia da televis�o nacional cubana (estatal, evidentemente).
Seria poss�vel supor que um sistema t�o esmerado de controle educativo e ideol�gico, praticado por institui��es pol�ticas e culturais oficiais, garantiria a cria��o entre os cubanos de uma alta capacidade de discernimento no consumo cultural, levando-os a dar prefer�ncia a produtos de alto n�vel est�tico, conceitual, �tico e humanista.
Mas os meios de comunica��o nem sempre alcan�am essas metas previstas, nem sequer nas condi��es acima descritas. Hoje, em Cuba, por exemplo, a m�sica mais ouvida pelo povo � o chamado reggaeton ou alguma de suas variantes, uma m�sica elementar e cansativa, com letras geralmente de enorme pobreza l�rica e, �s vezes, obscenas.
E n�o apenas o reggaeton � consumido, como se adotou o h�bito de as pessoas o tocarem em suas casas em volumes alt�ssimos, para o inc�modo de quem preferiria outra m�sica ou o sil�ncio. E isso � feito com total impunidade, como se fosse sinal de identidade e at� de poder.
Algo semelhante ocorre com os programas de televis�o. Muitas das pessoas que conseguem acessar programas estrangeiros privilegiam os piores programas da televis�o "trash" gerados por alguns dos canais hisp�nicos do sul da Fl�rida, como o c�lebre "Caso Cerrado", em que algumas pessoas levam a p�blico suas mis�rias �ticas, pessoais e familiares diante de uma esp�cie de ju�za.
Mas uma das maiores aberra��es foi a recente promo��o do "livro do ano" em Cuba. Entre os t�tulos preferidos pelos cubanos em 2015, o mais destacado e divulgado foi um livro de receitas culin�rias! Para escancarar ainda mais a pobreza cultural desse fato, um programa jornal�stico da TV oficial cubana difundiu o acontecimento e, segundo pude ler, dedicou v�rios minutos a uma entrevista com o "escritor" vitorioso.
O que acontece nas entranhas e na intelig�ncia de uma sociedade quando seus cidad�os escolhem como um de seus livros do ano um livro de receitas? E quando sua televis�o oficial d� mais destaque a esse fato que a grande parte da produ��o liter�ria do pa�s? Simplesmente ocorreu um processo de degrada��o da capacidade intelectual dessa sociedade. Ou ent�o se est� manipulando a trama cultural para que um texto sem conflitos alcance essa distin��o e seja, al�m disso, exaltado pela altamente politizada imprensa oficial do pa�s.
Para quem se dedica ao trabalho liter�rio em Cuba, n�o � apenas ofensivo que tais manifesta��es se produzam � nossa volta. Os leitores cubanos n�o puderam encontrar em seu pa�s um �nico livro ao qual dar sua prefer�ncia?
Para onde se encaminha uma sociedade na qual, com certeza, a comida nunca foi suficiente para satisfazer as necessidades da popula��o, e, ao mesmo tempo, um livro de receitas culin�rias � o paradigma da leitura que mais e melhor se difunde, consome e promove? Quais s�o as escolhas poss�veis para os leitores cubanos quando sua principal institui��o editorial, o Instituto Cubano do Livro, se prop�e a editar 624 t�tulos no ano e s� consegue imprimir 231?
Depois de tanto controlar e decidir o que dev�amos consumir culturalmente, ser� que vamos acabar assistindo a televis�o "trash", ouvindo baixarias de reggaeton em alto volume e lendo livros de receitas de cozinha em lugar de literatura? Depois de tanto esfor�o e controle, estar�amos vivendo uma alarmante regress�o � banalidade e ao mau gosto?
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