Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Esp�rito natalino
As festas natalinas foram oficialmente suspensas em Cuba por mais de duas d�cadas, a partir do ano 1969 ou 1970. A raz�o apresentada pelo governo para justificar a decis�o era a necessidade de aproveitar essas prop�cias jornadas invernais do tr�pico para redobrar esfor�os nas campanhas de corte de cana, uma atividade econ�mica vital para o desenvolvimento do pa�s. O prop�sito menos divulgado, mas presente na decis�o, era a supera��o de um costume considerado atrasado em um pa�s onde, segundo os preceitos marxistas adotados, a religi�o deveria ser superada em favor do progresso social e espiritual de indiv�duos empenhados na constru��o de uma nova sociedade.
Contudo, como consoladora alternativa festiva, o �ltimo dia do ano velho e o primeiro do ano novo funcionavam como t�bua de salva��o, gra�as � efem�ride da vit�ria revolucion�ria, que tinha se concretizado em 1� de janeiro de 1959. Essa data, que era festejada, era justificada com conota��es pol�ticas, e n�o religiosas ou de costumes antigos imaculados havia s�culos. Os spots de propaganda desejavam, desde ent�o, um "Feliz anivers�rio do triunfo da Revolu��o", em lugar do tradicional "Feliz Natal e Pr�spero Ano Novo" que os cubanos costumavam desejar uns aos outros em suas sauda��es nessa �poca.
A partir da d�cada de 1990 o Natal voltou, devagar e sorrateiramente, a ser festejado em Cuba. Desde ent�o, a festa de origem religiosa e comemora��o hist�rica conviveu em harmonia melhor, que se tornou mais efetiva quando, a pedido do papa Jo�o Paulo 2�, o governo cubano restituiu o feriado de 25 de dezembro, primeiro de modo excepcional (gra�as � visita do pont�fice � ilha) e depois permanentemente (como gesto de boa vontade em rela��o ao papa e os religiosos cubanos).
E, embora muitas pessoas no pa�s tenham restaurado os restos da solenidade natalina por tantos anos cancelada (ou praticada a portas fechadas pelos fi�is mais devotos), j� se sabe que poucas coisas s�o mais delicadas que as tradi��es: alimentar e preserv�-las costuma ser f�cil, mas faz�-las renascer � um esfor�o mais complexo.
Muitas fam�lias em Cuba, eu diria que uma porcentagem enorme delas, festeja hoje os dias de Natal e se despedem com esp�rito festivo do ano que se encerra. Cada uma segundo suas possibilidades econ�micas e seu grau de cren�a religiosa. Quase todas preparam uma ceia especial nesses dias, a maioria delas com carne de porco (na melhor tradi��o cubana), outras com peru (se o conseguem, pois essa ave parece ter se extinguido em Cuba) e outras com um simples frango. Muitas fam�lias penduram algum enfeite natalino em suas salas e portas, e h� outras que chegam a montar �rvores de Natal (�s vezes � poss�vel compr�-las nas lojas do pa�s), enquanto outras tiram o p� de velhas figurinhas salvas do esquecimento para montar um pres�pio, com sua manjedoura, Maria, Jos� e os Reis Magos. Hoje, al�m disso, as pessoas em posi��o econ�mica melhor costumam exibir sua situa��o com muitas luzinhas coloridas -embora isso n�o implique necessariamente que sejam mais crentes.
Ent�o o chamado "esp�rito natalino" se estende pelas cidades e os campos de um pa�s que, com atitude revolucion�ria, quis superar esse atraso de um passado tamb�m vencido em muitas outras frentes econ�micas, sociais e culturais. S� que, devido � evolu��o social, a marginaliza��o sofrida por tantos anos e as dificuldades econ�micas, o novo ambiente natalino adquiriu conota��es novas e diferentes para uma parte consider�vel da popula��o cubana.
Um elemento que ganhou for�a � a atitude greg�ria, que cresceu. Mais que familiar, a celebra��o natalina � um evento social do qual tamb�m participam amigos e conhecidos em busca da divers�o simples � base de m�sica, bebida e comida. Quem faz as vezes de anfitri�o da multid�o festejante contribui com quantidade maior ou menor de insumos comest�veis e beb�veis, enquanto os convidados trazem diversas contribui��es complementares. Mas o que mais se destaca como componente festivo � a m�sica. Mas n�o a m�sica para ouvir ou para dan�ar (� a m�sica pela m�sica, como sinal de que h� festa e que todos no bairro precisam saber disso). Por essa raz�o, muito antes de come�ar a festa em si, a m�sica j� se faz presente e, � claro, em um volume que a torne percept�vel no bairro todo e por qualquer transeunte. Por isso, se hoje me perguntam qual � o elemento que melhor caracteriza o esp�rito natalino cubano, eu diria que s�o dois: o �lcool e a m�sica trovejante da qual falei.
A m�sica que as pessoas reproduzem em suas casas constitui hoje um verdadeiro problema nacional em Cuba. Cada vez mais pessoas no pa�s concebem o ato de ouvir m�sica como uma proje��o de sua alegria e, por isso, a tocam em volumes muito altos. S� que nos dias de festa a agress�o sonora come�a desde cedo e se estende, invenc�vel, at� altas horas da madrugada, sem que ningu�m se atreva a intervir, incluindo as autoridades que, supostamente, deveriam vigiar contra um fen�meno que altera a conviv�ncia. Hoje, em Cuba, somos todos obrigados a ouvir m�sica, seja ela m�sica da qual gostamos ou que odiamos, pois a vontade do vizinho "alegre" nos obriga a sofrer algo que se pode descrever como uma invas�o sonora que, nos dias natalinos, alcan�a propor��es b�licas. At�micas!
Enquanto isso, o consumo de bebidas, que parece ter se convertido em um problema social e de sa�de no pa�s, alcan�a seu auge tamb�m nesses dias, como se embebedar-se fosse o melhor e mais percorrido caminho para a alegria ou para o c�u da inconsci�ncia.
Sei que vivemos em uma �poca, inclusive em um s�culo diferente daquele que me deu minhas primeiras no��es do Natal, da despedida do ano e at� da comemora��o do Dia de Reis (tamb�m suprimido dos calend�rios festivos cubanos). A m�stica que essa �poca costumava ter, inclusive para os n�o crentes, foi devorada pela quebra de uma tradi��o e pela contamina��o de atitudes sociais que s�o express�es de uma altera��o e da perda de valores relacionados � precariedade econ�mica, � conviv�ncia e ao respeito pelo direito do outro, males que assolam a ilha do Caribe. O esp�rito natalino mudou muito, eu diria que se desvirtuou em rela��o � sua origem, mas, de qualquer modo, serve como pretexto insuper�vel a meus compatriotas que, na realidade, n�o precisam de motiva��es divinas para praticar uma de suas atividades preferidas: a festa. E quanto mais barulhenta e cheia de gente, melhor, n�o � verdade?
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