Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Miami e a conc�rdia
H� cerca de 20 anos, na ocasi�o da abertura da exposi��o de um pintor cubano na cidade de Miami, um grupo de extremistas anticastristas fez uma fogueira p�blica e inquisitorial com uma das obras do artista, acusado de viver em Cuba e, portanto, de ser no m�nimo representante do regime de Havana. Algum tempo depois foi difundida a imagem de uma m�quina niveladora de ruas passando sobre os discos de um m�sico radicado na ilha e que pretendia apresentar-se na cidade. Mais recentemente, uma famosa orquestra cubana foi recebida no aeroporto internacional de Miami com cartazes exigindo que voltasse a Cuba, cena que se repetiu diante do teatro onde ela iria se apresentar.
Pelo simples fato de viver e trabalhar em Cuba e, independentemente de sua proje��o pol�tica ou social, todos esses artistas e muitos outros sofreram as consequ�ncias de um extremismo que alcan�ava grande visibilidade nos meios de comunica��o, apesar de ser alimentado por um n�cleo de exilados numericamente pequeno, embora politicamente poderoso. Por isso, ainda que n�o seja a realidade, mas apenas uma parte dela, esse n�cleo sequestrava o estado de opini�o e se convertia na imagem mais difundida do cubano de Miami enfrentando o cubano da ilha –como se eles fossem inimigos inconcili�veis.
Em meio a esse clima pol�tico que se prolongou por muito mais anos do que deveria, sobretudo porque aquela imagem agressiva j� n�o representava o pensamento real da maioria do ex�lio cubano radicado no sul da Fl�rida, alguns artistas da ilha insistiram em seus esfor�os de aproximar-se de uma comunidade na qual vive em torno de 1 milh�o de seus compatriotas e outros tantos descendentes de exilados, nascidos nos Estados Unidos mas que t�m forte rela��o cultural e espiritual com a terra de origem familiar.
Com sua pol�tica de abrir espa�os na rela��o com Cuba, antes mesmo de ser anunciado e depois implementado o restabelecimento dos v�nculos diplom�ticos entre os dois pa�ses, o governo de Barack Obama deu um passo importante para que aquelas rea��es dignas do homem das cavernas fossem perdendo espa�o, sentido, capacidade de mobilizar. � que, � diferen�a de seu predecessor, Bush Jr., o presidente atual abriu as possibilidades desses reencontros com uma pol�tica muito mais permissiva de vistos, algo que beneficia n�o apenas os artistas, mas muitos cidad�os cubanos que querem visitar o vizinho do norte e muitos cubanos radicados nos Estados Unidos que querem passar alguns dias com seus familiares que permaneceram na ilha. E o rio fluiu e come�ou a arrastar lodos e obst�culos acumulados de um lado e outro do estreito da Fl�rida e a criar um novo clima social muito mais aberto e tolerante.
Dois anos atr�s tive uma experi�ncia pessoal muito gratificante e demonstrativa do quanto mudou a rela��o dos cubanos de Miami com os cubanos de Cuba. Em uma de minhas visitas a esta cidade, decidi, pela primeira vez, realizar um ato p�blico. Com o apoio da Universidade Internacional da Fl�rida e da mais importante livraria de Miami, fiz uma confer�ncia acad�mica e um encontro com o p�blico leitor. Nos dois casos, com a sala cheia, tive a satisfa��o de me comunicar com alguns leitores dos quais recebi as mais calorosas manifesta��es de afeto pessoal e de proximidade com minha obra, em um ambiente de harmonia crescente.
Algo semelhante vem acontecendo com artistas pl�sticos, m�sicos e atores chegados de Cuba para fazer alguma a��o cultural na cidade: a comunica��o foi estabelecida com coer�ncia e normalidade, como aconteceu quando um grupo de atores radicados em Cuba e outros que vivem em Miami se reuniu na Fl�rida para reeditar o programa humor�stico mais popular da televis�o cubana na d�cada de 1990. E tudo transcorreu sem consequ�ncias ou incidentes, nem em Miami nem em Havana.
Agora, durante minha passagem por Miami para a Feira Internacional do Livro, em que participarei de um debate enquanto esta coluna � publicada, tive a oportunidade de ver a estreia de um filme franco-cubano, mas de tema totalmente havan�s, e de assistir a um concerto de jazz latino cujo destaque ser� um grande m�sico cubano e que ser� dedicado aos 40 anos da cria��o de um dos agrupamentos musicais emblem�ticos da Cuba dos anos 1970. Nos dois eventos, um centrado na realidade cubana e outro voltado � nostalgia do passado compartilhada por tantos compatriotas de dentro e fora da ilha, as salas cheias de um p�blico participativo e entusiasta criaram um ambiente de cumplicidade e comunica��o afetiva e cultural.
E � justamente desse ambiente que precisa o esp�rito de um pa�s que durante d�cadas se dividiu entre os que ficaram e os que se foram, com todas as conota��es pol�ticas e at� �ticas que tiveram alguma raz�o de ser em um momento hist�rico, mas que os anos, a vida, a evolu��o das sociedades e o passar das gera��es parecem ter superado definitivamente ou estarem no processo de faz�-lo, para o bem de todos, para o al�vio da alma de um pa�s que, sem renunciar � mem�ria hist�rica, precisa olhar para frente e estender todas as pontes poss�veis de entendimento. E esse caminho precisa ser pavimentado pela harmonia, n�o pelo �dio.
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