Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Recife e os dentes de Rembrandt
Fui ao Recife como autor convidado para a 10� Bienal do Livro de Pernambuco, levando nas m�os a rec�m-publicada edi��o brasileira de meu romance "Hereges". O fato de estar no Recife, e precisamente para apresentar esse romance, tinha para mim uma conota��o bastante especial, nascida dos cruzamentos hist�ricos entre essa cidade nordestina e certos acontecimentos muito dram�ticos que narro no livro.
Por isso, semanas antes da minha estadia pernambucana, eu j� havia marcado uma visita ao local onde funcionou a primeira sinagoga do Novo Mundo, Kahal Zur Israel.
Fundada no Recife em 1636 pelos judeus sefarditas chegados dos Pa�ses Baixos, especificamente de Amsterd�, essa sinagoga � um importante sinal hist�rico da presen�a dos comerciantes e colonos holandeses que durante quase duas d�cadas dominaram essa esquina dos territ�rios hispano-portugueses da Am�rica. E que seriam os culpados hist�ricos pelas longas noites de sofrimento e dor de que durante anos padeceu o grande mestre da pintura holandesa Rembrandt van Rijn (1606-69).
Como � sabido, a presen�a holandesa nessa regi�o brasileira provocou algumas mudan�as na economia e na fisionomia do Recife. E uma dessas mudan�as foi o aumento da produ��o de melados extra�dos da cana-de-a��car, cultivo que tinha sido fomentado desde o s�culo anterior especialmente pelo administrador colonial portugu�s Duarte Coelho de Pereira.
Os comerciantes holandeses, entre os quais havia v�rios dos judeus de Amsterd� (os mesmos que fundaram a sinagoga), que fizeram grandes fortunas no s�culo 17, foram os principais introdutores do produto na Europa. E um de seus destinos foi Amsterd�, onde floresceram v�rias refinarias que se encarregavam de processar os melados pernambucanos para obter a��car –e balas.
Aquelas balas, que costumavam ter forma c�nica, causaram furor na Amsterd� burguesa da �poca, e dizem que era frequente ver os moradores da cidade andando pelas ruas saboreando a novidade doce.
Como tamb�m � sabido, uma das manifesta��es pict�ricas que Rembrandt cultivou com mais frequ�ncia foi o autorretrato. V�rias dezenas foram conservadas e servem n�o apenas para entender a evolu��o t�cnica e conceitual do mestre, mas tamb�m para observar suas modifica��es fision�micas e espirituais: sua passagem da juventude plena de esperan�as � velhice de perdas sentimentais e frustra��es art�sticas.
Um estudioso dos autorretratos de Rembrandt advertiu, em uma an�lise cronol�gica desses trabalhos, que algo de estranho acontecia com os dentes do artista, que iam escurecendo � medida que passavam os anos. Outros tinham atribu�do o escurecimento a processos mais ou menos semelhantes aos ocorridos com algumas de suas outras obras, nas quais Rembrandt utilizou vernizes e tintas que tenderam a escurecer com o passar das d�cadas e dos s�culos.
Foi esse o caso da obra mais c�lebre do pintor, hoje conhecida como "A Ronda Noturna", � qual Rembrandt na realidade deu o t�tulo de "A Companhia Militar do Capit�o Frans Banning Cocq e o Tenente Willem van Ruytenburg" e que, por suas profundidades escuras, foi interpretada como cena noturna quando, na realidade, o mestre tinha pintado um amanhecer. Um amanhecer que escureceu devido aos vernizes, que mudaram a ilumina��o, fazendo parecer um momento de penumbra em lugar de um instante de luminosidade.
Mas o especialista nos autorretratos advertiu que o processo de escurecimento habitual das pinturas n�o seguia os mesmos padr�es quando se detinha sobre o detalhe dos dentes do criador. Aquele era outro tipo de escurecimento, e... o especialista determinou que se devia a causas f�sicas, e n�o a um processo qu�mico de altera��o crom�tica do quadro.
E ent�o se revelou a conex�o de Rembrandt e seus sofrimentos f�sicos com os melados pernambucanos convertidos em balas holandesas. Uma not�cia perdida em um di�rio da �poca falava das frequentes visitas de Rembrandt ao dentista, que, um a um, foi extraindo seus dentes cariados e enegrecidos pelo consumo excessivo das balas, das quais ele tinha ficado dependente.
Essa dolorosa liga��o de Rembrandt com o Recife foi para mim, como escritor, uma revela��o valiosa: podia estar ali a origem do mau humor que seus contempor�neos (especialmente seus disc�pulos) atribu�am ao grande pintor. Porque ningu�m pode ter humor pior que uma pessoa que passa a noite em claro, martirizada por uma dor de dentes.
E foi aos melados do Recife que, em "Hereges", atribu� os acessos de mau humor do mestre holand�s. O mesmo romance com o qual cheguei pela primeira vez a esta velha e bela cidade do m�tico Nordeste brasileiro.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade