Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Licen�a esportiva
Voc�s conseguem imaginar um escritor que, para ajudar um colega menos talentoso, escreva um livro, envie-o a um concurso com o nome do amigo e, tendo obtido um pr�mio, os dois celebrem a ocasi�o juntos –pois o amigo beneficiado, em um ato de gratid�o elementar, partilha com o benfeitor os benef�cios econ�micos da recompensa?
E o que me diriam de um escritor que, para resolver um problema de bloqueio criativo, toma ideias e textos de outro autor e os reproduz como se fossem seus? Ou de um pintor que copia os trabalhos de outro? Ou de um m�sico que rouba acordes?
Claro que todos condenar�amos artistas como esses, por serem fraudulentos, plagi�rios, enganadores. E n�o lhes emprestar�amos nossa simpatia, pois teriam feito algo eticamente reprov�vel, e pass�vel at� de puni��o judicial.
Alguns dias atr�s, tive a oportunidade de ver, em sequ�ncia, duas partidas da Champions League do futebol europeu. Na primeira, Vincent Kompany, capit�o e zagueiro do Manchester City, correu pelo gramado celebrando o gol que supostamente havia feito de cabe�a contra a Juventus. Um gol que ele sabia n�o ter marcado. E seus companheiros de equipe o felicitaram. E o p�blico o aplaudiu, delirante. A seguir, quando as imagens da jogada foram repetidas, era vis�vel que Kompany havia cometido uma falta na �rea contra Giorgio Chiellini, que, imobilizado pelo zagueiro belga, acertou a cabe�ada que resultou em um gol contra.
Na segunda partida a que assisti, o extraordin�rio, aclamado e querid�ssimo Cristiano Ronaldo, atacante do Real Madrid, reclamou com o juiz que a defesa advers�ria havia cometido uma falta (m�o) dentro da �rea, e o juiz marcou p�nalti.
Mas Cristiano Ronaldo sabia perfeitamente que a falta n�o havia existido, como reclamava o pobre zagueiro ucraniano. N�o obstante, o portugu�s bateu o p�nalti, marcou o gol e celebrou entusiasticamente, vencedor, com a maior cara de pau, rodeado pelos companheiros de equipe e premiado com os aplausos dos torcedores, que tanto amam o genial Cristiano Ronaldo.
A prop�sito dessas jogadas, um dos mais conhecidos comentaristas de futebol do mundo hisp�nico, Mario Kempes, antigo astro da sele��o argentina, atreveu-se durante a transmiss�o a chamar de "delinquente" um dos jogadores que encenaram essas trapa�as, ainda que n�o tenha demorado a atenuar a classifica��o definindo-o apenas como "delinquente esportivo". Porque, ao que parece, se trata apenas de um jogo e o engano cometido n�o � t�o grave, certo?
Mas agora me pergunto, lhes pergunto: como � poss�vel que admitamos como algo normal, quase admir�vel, que um esportista simule faltas, trapaceie, para vencer uma partida e, ao faz�-lo, ganhar seu sal�rio? Que qualidades �ticas pode ter uma pessoa que, para atingir seus objetivos, recorre a essas artimanhas diante de todos mas, al�m disso, � celebrado por quase todos e com a maior impunidade?
Ser� que os esportistas, profissionais ou amadores, multimilion�rios ou pobres, t�m licen�a especial para violar as regras �ticas mais elementares?
Poder�amos n�s, escritores, jornalistas, artistas, recorrer a esses mesmos truques sujos para enganar o p�blico e desfrutar tranquilamente dos benef�cios que eles nos propiciassem?
Em defesa da limpeza �tica do mundo do esporte, algu�m poderia recordar, talvez, que o p�blico, a imprensa e certas federa��es tendem a ser muito radicais quando um competidor se dopa para melhorar de rendimento. E isso � fato. As condena��es costumam ser dr�sticas e a perda da confian�a do p�blico dif�cil de superar, como ocorreu a alguns superastros do beisebol norte-americano... Mas e enquanto eles se dopavam e ningu�m sabia? Enquanto isso, eles eram aplaudidos, admirados, bem pagos. Eram os reis da popularidade e do espet�culo!
� evidente que o ato de se dopar n�o acontece em p�blico, e todos podemos afirmar que fomos enganados, tra�dos em nossa confian�a pelo "delinquente" esportivo. E por isso n�o os perdoamos... Mas se, como um m�gico, ele executa um truque diante de n�s e nos faz felizes... tocamos a aplaudir! S�o g�nios, olha s� o que fizeram!
� lament�vel ter de recordar agora que �tica, dec�ncia e respeito ao pr�ximo s�o valores universais do comportamento. E que sua viola��o � um ato anti�tico ou imoral, indecente, e uma falta de respeito para com os outros. N�o importa que isso ocorra na arte, na pol�tica ou no esporte. N�o importa se quem nos engana e prospera com essas trapa�a se chama Cristiano Ronaldo, Neymar, Kompany ou Luis Su�rez, que seja milion�rio e famoso, ou se quem nos engana � um pobre desconhecido qualquer. Ou sim, importa: j� que esses milion�rios se tornaram milion�rios porque voc� e eu acreditamos que s�o grandes no campo de jogo. Ainda que o sejam, muitas vezes se comportam como an�es morais.
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