Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. � autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Cuba em branco e preto
Acabo de realizar uma viagem de promo��o liter�ria pelo Brasil. Subindo da feira de Canoas, no Rio Grande do Sul, cheguei ao Rio de Janeiro, com paradas em S�o Paulo e na impressionante Flip, na n�o menos impressionante cidade de Paraty.
Foi um percurso intenso, pleno de satisfa��es humanas e liter�rias, que teve como marcas mais not�veis um encontro pessoal com o presidente Lula na sede do instituto que ele dirige em S�o Paulo; um jantar e muita conversa no Rio com o admirado Chico Buarque de Hollanda; e a agrad�vel comprova��o de que no Brasil eu talvez seja mais conhecido do que em Havana, quando em diversos lugares, n�o especialmente liter�rios – aeroportos, restaurantes e o cal�ad�o de Ipanema–, algu�m me abordava e perguntava se eu era o autor de "O Homem que Amava os Cachorros".
A parte mais am�vel do trabalho, como sempre, foram os encontros com os leitores, esses seres fantasmag�ricos para os quais um autor escreve sem deles nada saber e que se materializam, com rostos e vozes humanas pr�prios, em audit�rios e sess�es de aut�grafos. A parte mais �rdua, como sempre, � a promo��o do trabalho na imprensa por meio de entrevistas, que nesta ocasi�o passaram das duas dezenas em apenas dez dias.
O fato de ser um cubano que, al�m disso, se dedica a escrever livros e cr�nicas � uma marca indel�vel que me persegue exatamente nessa parte do trabalho promocional. Para a imprensa –e presumo tamb�m que para o leitor brasileiro–, Cuba e suas quest�es pol�ticas s�o um tema de eterno interesse, muito mais atraente, ao que parece, do que minhas preocupa��es est�ticas e meus af�s liter�rios na cria��o de hist�rias e personagens.
E o mais complexo � que cada entrevistador, antes de me perguntar, j� tem ju�zo formado sobre a realidade e a vida cubanas e a �nica coisa que desejaria � que algu�m chegado da ilha confirmasse seus conceitos (para n�o dizer preconceitos, ainda que de fato sejam –pois, como a palavra mesma diz, trata-se de conceitos pr�vios, j� assumidos).
A atual conjuntura cubana, depois da virada hist�rica do 17 de dezembro de 2014 (quando os presidentes Ra�l Castro e Barack Obama anunciaram a inten��o de iniciar um processo para o restabelecimento de rela��es diplom�ticas entre Havana e Washington), disparou esse interesse hist�rico por Cuba. Mas a nova situa��o recebeu um impulso adicional quando, em meio � minha viagem, foi confirmada a abertura de embaixadas j� a partir de 20 de julho.
As perguntas sobre o que se passou em Cuba desde o an�ncio do 17-D e, especialmente, sobre o que acontecer� no futuro mediato e imediato choveram sobre mim com e sem l�gica: pois, se h� algo que posso dizer sobre o que ocorreu (e eu o disse), dificilmente posso lan�ar qualquer suposi��o sobre o que ainda n�o ocorreu.
O tema da atualidade de Cuba e de seu processo social e pol�tico costuma se complicar quando os preconceitos n�o t�m matizes; ou seja, quando se v� Cuba em branco ou preto. Mas ele se torna ainda mais arrevesado quando, no extremo do espectro crom�tico em que se coloca o interessado, est� inclu�do o que se sup�e seja conhecimento ou experi�ncia pessoal sobre uma realidade com a qual a pessoa teve apenas um contato espor�dico e n�o cotidiano, sustentado, ademais, de uma perspectiva pol�tica j� formada e do �ngulo equ�voco propiciado pelo fato de ter visitado a ilha... mas sem nunca ter nela vivido.
Ao longo de meus anos como escritor e jornalista, sempre segui um princ�pio com rela��o a minhas opini�es sobre as realidades sociais e pol�ticas de outros pa�ses. Foi o de reservar essas opini�es pessoais (que certamente tenho) sem express�-las em p�blico, porque elas seriam apenas as impress�es de algu�m que entra tangencialmente em um contexto sem dominar todos os seus matizes, uma condi��o que � adquirida atrav�s da conviv�ncia �ntima com uma realidade ou com um conhecimento muito espec�fico dela.
Mas Cuba costuma gerar paix�es demais. Ao que parece, todos querem referend�-las, e para eles � melhor se puderem contar com a voz de um escritor cubano capaz de lhes oferecer a imagem sat�nica ou paradis�aca previamente formada. E assim podem esquecer que um escritor � exatamente isso, um escritor, e n�o um especialista em rela��es internacionais, em economia, em sociologia... ou at� um profeta –e ainda menos em sua terra, como se costuma dizer desde os tempos b�blicos.
Como disse certa vez Eduardo Galeano, "Cuba d�i". A alguns na parte esquerda do peito, a alguns na direita, mas d�i. E, com essa carga dolorosa, o escritor que nasceu em Cuba e, para culminar, continua vivendo e escrevendo em Cuba deve assumir a parte mais complexa de seu trabalho... sem d�vida um pa�s no qual, como todos os artistas, o escritor sofre as d�vidas da cria��o, que s�o muito mais universais e eternas que as mut�veis quest�es pol�ticas, t�o prop�cias aos preconceitos.
Tradu��o de PAULO MIGLIACCI
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