![angela alonso](https://cdn.statically.io/img/f.i.uol.com.br/folha/especial/images/16099226.jpeg)
� professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de An�lise e Planejamento). Escreve aos domingos, mensalmente.
Brasileiro demanda literalidade na arte e aceita surrealismo na pol�tica
Anderson Astor/Folhapress | ||
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Protesto contra o fechamento da mostra Queermuseu, em frente ao Santander Cultural de Porto Alegre |
O Brasil tem dado mostras de pendor para a literatura e a cr�tica de arte. A segunda den�ncia de Janot, apesar de suas met�foras indianistas (arco e flecha), lembra uma novela de Balzac em volume (245 p�ginas) e personagens (mais de cem). Mas a escolha da "organiza��o criminosa chefiada pelo presidente da Rep�blica" como protagonista atesta que o g�nero � o romance policial.
Temer discorda. Classificou o narrativa como "realismo fant�stico". Conta com o apoio de Gabriel Garc�a M�rquez, que, em 2000, declarou: "A primeira condi��o do realismo m�gico, como seu nome indica, � que seja um fato rigorosamente certo, mas que pare�a fant�stico". Pol�mica desnecess�ria, portanto: est�o certos presidente e procurador, j� que a den�ncia � fant�stica e verdadeira.
Quest�es liter�rias atravessam tamb�m a novela "O Juiz versus o Ex-Presidente", ambientada em Curitiba. O cap�tulo "A Dela��o Palocci", flashback armando novo desfecho, foi reprovado por Lula como "fic��o hilariante". J� Moro exibiu pendor para os cl�ssicos, ao defender a linhagem ficcional brasileira que nomeia como "doutores" aqueles que jamais escreveram tese de doutorado.
Segue tamb�m a novela do PSDB. Depois da ascens�o e queda do gal� A�cio, o partido aposta no suspense, deixando em aberto quem ocupar� o cobi�ado papel de candidato a presidente.
Em meio a tal sanha fabuladora, surgiu novo movimento art�stico, que, como s�i acontecer, iniciou -se pela cr�tica a artistas estabelecidos. Kim Kataguiri � o vanguardista da tend�ncia, que se pode chamar de "literalismo". O jovem estudante deveria estar em um romance de forma��o, mas forma��o � o que lhe falta, como ficou patente em sua dificuldade de entender elabora��o est�tica.
Incapaz de distinguir o que se apresenta e o que se representa, insurgiu-se contra o que rotulou como defesa de zoofilia, pedofilia e ideologia de g�nero na exposi��o Queermuseu, em Porto Alegre. O cr�tico ne�fito n�o se arvorou a censor, mas por sua alf�ndega moral n�o passariam grandes mestres em pintura, escultura, m�sica ou literatura.
Kataguiri e seu MBL proclamam-se liberais. Contudo, impor certo padr�o de moralidade, conviv�ncia, pol�tica, educa��o e arte aos demais tem outro nome: chama-se autoritarismo.
O esquete talvez se esgotasse como outro espasmo di�rio de ignor�ncia na internet se n�o envolvesse Estado (via Lei Rouanet ) e mercado (um banco).
O Santander, financiador da exposi��o, � de bandeira espanhola e podia ter revidado a cr�tica evocando Francisco de Goya y Lucientes, que teve que pintar a "Maja Vestida", depois que sua "Maja Desnuda" foi considerada pornogr�fica. Mas a atitude do banco se avizinhou de outra face da tradi��o castelhana, a franquista: cancelou a exibi��o.
A cr�tica moralista a obras de arte ent�o transbordou. Propagou-se como as chamas da Inquisi��o. A pe�a "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do C�u", com o Messias encarnado numa mulher transg�nero, foi barrada antes de estrear no Sesc, em Jundia�.
Um colega de profiss�o de Moro, Luiz Antonio de Campos J�nior, assim o decidiu, depois de instado pelo movimento Tradi��o, Fam�lia e Propriedade. Em Campo Grande, a pol�cia, com apoio de deputados, apreendeu no Museu de Arte Contempor�nea o quadro "Pedofilia", parte da exibi��o Cadafalso, sob acusa��o de incitar o crime que o intitula.
Adeptos desse movimento pela moral e pelos bons costumes confundem literal e figurado. A compet�ncia humana b�sica de simbolizar e interpretar est� a perigo quando um sentido un�voco se imp�e e, neste caso, o mais pobre deles. Se a demanda � por literalidade, Jair Bolsonaro deve esperar protestos � sua porta para cumprir sua promessa: "Vamos satisfazer o desejo do mar de ganhar Minas."
Enquanto uns tomam tudo ao p� da letra, outros, na onda de "fake news" e "verdades alternativas", discutem apenas as "narrativas" dos atores pol�ticos.
Se os aficionados pelas teorias da "p�s-verdade" e os crentes na literalidade do ju�zo est�tico atentassem menos para costumes e narrativas e mais para a circula��o de malas de dinheiro, suas flechas convergiriam com as de Janot rumo ao presidente.
O rocambolesco de c�dulas encaixotadas, o grotesco da censura art�stica, a novela tucana, a trag�dia petista e a farsa peemedebista d�o raz�o a Garc�a M�rquez e a seu disc�pulo Temer: a realidade � fant�stica. No Brasil, demanda-se a literalidade na arte e aceita-se o surrealismo na pol�tica.
Aqui, o real � surreal.
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