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    Procuradoria quer indeniza��o e desculpas a �ndios por viola��es na ditadura

    RUBENS VALENTE
    DE BRAS�LIA

    23/08/2017 12h55

    Pedro Ladeira - 6.jul.2016/Folhapress
    BRAS�LIA, DF, 06.07.2016: �NDIOS-PROTESTO - �ndios Tupinamb�s, da Bahia, protestam por efetiva��o de seus direitos e contra a indica��o de um general do PSC para a presid�ncia da Funai. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)
    MPF ajuizou a��o contra a Uni�o e a Funai por danos causados aos �ndios durante o regime militar

    O Minist�rio P�blico Federal ajuizou uma a��o civil p�blica na Justi�a Federal do Amazonas contra a Uni�o e a Funai (Funda��o Nacional do �ndio) pela qual requer uma indeniza��o de R$ 50 milh�es e pedido oficial de desculpas aos �ndios vaimiri-atroari por danos sofridos pela etnia durante a ditadura militar (1964-1985).

    O pedido de abertura da a��o foi acolhido pela ju�za da 3� Vara Federal de Manaus (AM) Raffaela C�ssia de Sousa nesta ter�a-feira (22). Ela ordenou a cita��o dos r�us para apresenta��o de defesa.

    Os procuradores da Rep�blica tamb�m pedem a cria��o de um centro de mem�ria para divulgar informa��es sobre "as viola��es aos direitos dos povos ind�genas no pa�s e no Amazonas" e a inclus�o, no conte�do program�tico das escolas do ensino m�dio e fundamental, de estudos sobre as viola��es dos direitos humanos dos ind�genas durante a ditadura, "com destaque ao genoc�dio do povo vaimiri-atroari".

    Em anexo ao relat�rio final divulgado em 2014, a CNV (Comiss�o Nacional da Verdade) calculou que 2.650 �ndios vaimiri-atroari tenham morrido em consequ�ncia das obras de abertura da rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR). A obra foi realizada pelo Ex�rcito de 1968 a 1977.

    Na a��o civil p�blica, os procuradores veem com cautela o n�mero da CNV, pois h� d�vidas sobre o real n�mero de �ndios existentes na regi�o antes do final da constru��o, mas consideram comprovado o fato de que "pelo menos centenas" de �ndios morreram em consequ�ncia da obra.

    "[...] � poss�vel compreender, sem sombra de d�vidas, e independentemente da metodologia empregada para os 'censos', uma atua��o direcionada do Estado brasileiro para promover a extin��o f�sica do grupo em quest�o, ou ao menos assumir o risco de sua ocorr�ncia, com a consequente morte de pelo menos centenas de ind�genas", diz o texto da a��o civil.

    A a��o foi ajuizada pelos procuradores Fernando Merloto Soave, Julio Jos� Araujo Junior, Maria Rezende Capucci, Ant�nio do Passo Cabral, Edmundo Ant�nio Dias Netto J�nior e Marlon Alberto Weichert, os cinco �ltimos integrantes do Grupo de Trabalho Povos Ind�genas e Regime Militar do Minist�rio P�blico Federal.

    "RAJADA"

    A rodovia cortou ao meio o territ�rio vaimiri-atroari, que na �poca era uma etnia de pouco contato com os agentes do Estado brasileiro. Em 1917, a Uni�o havia "concedido" aos �ndios parte do territ�rio que habitavam.

    Ao longo de todo o s�culo passado, os �ndios reagiram fortemente � entrada de estranhos nos seus dom�nios. Essa rea��o, segundo o estudo do Minist�rio P�blico Federal, tem rela��o com massacres sofridos pelos ind�genas ao longo de d�cadas. H� relatos de 300 ind�genas mortos por uma expedi��o em 1856 e outros 283 durante um conflito armado com chamados "civilizados" em 1911, al�m de malocas incendiadas e ind�genas tornados prisioneiros.

    Ap�s o golpe de 1964, e dentro de uma estrat�gia pol�tica de ocupa��o da Amaz�nica, o governo militar decidiu construir a rodovia que ligaria Manaus � capital do ent�o territ�rio federal de Roraima. Os �ndios continuaram resistindo � presen�a de "civilizados". Dizimaram, em 1968, uma expedi��o autorizada pela presid�ncia da Funai e comandada pelo padre italiano Giovanni (no Brasil, Jo�o) Calleri, e depois mataram oper�rios da obra de constru��o da firma e funcion�rios da Funai.

    No final de 1974, os �ndios mataram o sertanista Gilberto Pinto Figueiredo e outros membros da equipe da Funai que trabalhavam em paralelo �s obras da rodovia para tentar "aldear" os �ndios por ordens e orienta��o de militares que comandavam o �rg�o indigenista.

    A partir de 1973, quando as obras atingiram um ponto importante, com os preparativos para a travessia de um rio importante na regi�o, segundo a a��o movida pelo Minist�rio P�blico Federal, o conflito entre �ndios e Ex�rcito se acentuou e tropas militares do BIS (Batalh�o de Infantaria de Selva) foram deslocadas para a regi�o.

    Em novembro de 1974, o respons�vel pelas obras, o general Gentil Nogueira Paes, ent�o comandante do 2� GEC (Grupamento de Engenharia e Constru��o), subordinado ao BEC (Batalh�o de Engenharia e Constru��o), distribuiu um memorando autorizando as tropas a "realizar pequenas demonstra��es de for�a, para mostrar os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destrui��o pelo uso da dinamite".

    DEPOIMENTOS

    Os procuradores da Rep�blica colheram depoimentos de oper�rios e ind�genas que confirmaram essas demonstra��es de for�a. O oper�rio Raimundo Pereira Silva disse ao Comit� da Verdade do Amazonas que os �ndios "eram levados em uma ca�amba para o acampamento do BEC, faziam eles descerem e davam 600 tiros. Os �ndios ficavam tremendo".

    Em depoimento aos procuradores da Rep�blica, Manoel Paulino, �ndio da etnia karapan� contratada pela Funai para atuar na obra, disse ter visto ind�genas mortos. "Eu vi corpos dos �ndios trazidos em uma ca�amba e serem jogados no buraco da terraplanagem. Vi cinco ca�ambas com �ndios."

    Os procuradores mencionam tamb�m depoimentos e desenhos realizados pelos vaimiri-atroari a pedido do indigenista e co-fundador do Cimi (Conselho Indigenista Mission�rio) Egydio Schwade, de Presidente Figueiredo (AM). Os �ndios mencionaram fuma�as e subst�ncias despejadas por avi�es que causaram mortes.

    "Foram realizadas agress�es aos �ndios tanto por via a�rea quanto por via terrestre. Os elementos colhidos indicam que os ataques a�reos j� vinham ocorrendo mesmo antes de 1975, como demonstram os depoimentos dos �ndios e de funcion�rios, bem como a men��o a bombardeio que teria ocorrido em data anterior aos ataques de outubro e novembro de 1975", afirmaram os procuradores na a��o civil p�blica.

    O MPF cita tamb�m um relat�rio de 1975 assinado pelo sertanista da Funai Apoena Meireles, no qual descreveu ter tomado conhecimento de ind�genas mortos na regi�o: "Em meio aos muitos 'tome cuidado', parti para a �rea e comecei a tomar conhecimento da verdade sobre os fatos que ocorreram ultimamente. Pude ent�o verificar que infelizmente n�s s� falamos dos nossos mortos, os �ndios que tombaram no sil�ncio da mata foram sutilmente enterrados e esquecidos no espa�o e no tempo".

    Os procuradores da Rep�blica ressaltaram que ao longo dos anos o Estado brasileiro n�o assumiu ter colaborado para a morte ou matado �ndios vaimiri-atroari durante a constru��o da rodovia.

    "Enquanto se materializava a viol�ncia como instrumento do poder estatal durante aquele per�odo [militar], nenhuma morte ind�gena nem sequer chegou a ser anunciada ou registrada oficialmente. E assim se mant�m. Tais fatos foram e continuam sendo silenciados ou esquecidos, e nenhuma viol�ncia aos vaimiri-atroari foi oficialmente contabilizada."

    OUTRO LADO

    Procurado pela Folha, o Ccomsex (Centro de Comunica��o Social do Ex�rcito) informou nesta quarta-feira (23) que "at� o presente momento o Ex�rcito Brasileiro n�o recebeu comunicado do Minist�rio P�blico Federal". A Funai, procurada, n�o havia se manifestado at� o fechamento deste texto.

    Nos autos da a��o, os procuradores anexaram uma carta datilografada e encaminhada em 1983 ao CMA (Comando Militar da Amaz�nia) pelo general Gentil Nogueira Paes, j� falecido, que contestava uma not�cia publicada na epoca no jornal "A Cr�tica", de Manaus. O papel foi entregue ao Minist�rio P�blico pelo CMA.

    Paes comandou o 2� GEC de 1974 a 1978. Segundo o general, "o trato com os �ndios foi, sem d�vida, um dos mais delicados, pois sabia que estava pondo em jogo a vida de muitos homens, brancos e �ndios, numa luta sem inimigos, onde, aos meus, era absolutamente vedado ferir ou molestar de qualquer maneira esses nossos irm�os".

    O general contestou, na carta, o n�mero de �ndios existentes antes da rodovia. "Nunca a Funai ou quem quer que seja soube o n�mero de pessoas existentes nas duas tribos. Quando assumi o comando do 2� GEC, em 1974, aquela Funda��o estimava aquela popula��o entre 1.000 e 1.500 pessoas".

    Na carta ao CMA, Paes disse que as "demonstra��es de for�a" nunca foram feitas, "por absoluta falta de oportunidade". Paes relatou que o Ex�rcito redobrou "o sistema de seguran�a nos acampamentos, nos canteiros de trabalho e nos deslocamentos dentro da reserva, com a ideia dominante de, ostensivamente, mostrar nossa for�a com o fim exclusivo de desencoraj�-los a novos ataques e nos mantermos sempre atentos aos contatos amistosos".

    O general disse ter a impress�o, "e os fatos o confirmam, de que essa estrat�gia foi bem sucedida", pois "inicialmente eles desapareceram da mata por um longo per�odo". Depois passaram a manter contatos com os militares, segundo o general, at� o fim da obra. "Realmente a estrada foi constru�da sem a morte violenta de um s� �ndio e eu tenho imenso orgulho disso", afirmou o militar.

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