• Ilustr�ssima

    Thursday, 01-Aug-2024 07:38:59 -03

    M�sicos da nova cena paulistana t�m de atuar como empres�rios da can��o

    MARCIA TOSTA DIAS

    05/02/2017 02h00

    RESUMO A partir de livro que surgiu como disserta��o de mestrado, o texto destrincha os tra�os da atual cena musical paulistana. Marcada pelo crep�sculo das grandes gravadoras e pela intera��o com o p�blico via internet, a nova gera��o responde n�o s� pelo campo criativo de sua carreira como tamb�m pelo log�stico.

    Everton Ballardin/Divulga��o
    A partir da esq., Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Romulo Fr�es, integrantes do Passo Torto
    A partir da esq., Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Romulo Fr�es, integrantes do Passo Torto

    A quantas anda a m�sica brasileira depois que a grande ind�stria fonogr�fica perdeu a prerrogativa de orientar, direta ou indiretamente, as formas de produ��o e difus�o, sobretudo de m�sica gravada?

    Thiago Galletta explora uma das faces desse grande tema, trazendo para o foco o circuito independente em "Cena Musical Paulistana dos Anos 2010" [Annablume, 298 p�gs., R$ 69], livro concebido como disserta��o de mestrado em sociologia.

    O substrato que lhe serve de �ncora � justamente o crescimento da referida cena, ratificado pelo aumento da oferta de m�sica gravada, pela amplia��o das apresenta��es ao vivo de um grupo cada vez mais diversificado de artistas e pela intensifica��o do fluxo de informa��o sobre m�sica em meios variados, sobretudo na internet.

    O exame detalhado desses elementos em v�rias perspectivas resultou em an�lise substanciosa e instigante sobre o contexto musical brasileiro que surge a partir da incorpora��o das tecnologias digitais. O terreno explorado � intrincado e movedi�o. Para enfrent�-lo, al�m de fontes bibliogr�ficas e de imprensa, Galletta mobiliza repert�rio de entrevistas com m�sicos, produtores e jornalistas e conhecimentos adquiridos em sua atua��o como radialista, produtor e DJ. Os excertos de entrevistas trazem precioso subs�dio ao estudo.

    Abre o caminho para a an�lise uma oportuna retrospectiva dos sistemas que aproximaram a m�sica da internet, no intervalo de 1995 a 2015. Busca-se compreender a maneira como o desenvolvimento de tais aparatos foi influenciando e alterando a din�mica do trabalho dos m�sicos, as formas de recep��o do material musical e de intera��o entre artistas e p�blico –cada vez mais direta, sem os intermedi�rios tradicionais (r�dio, TV, "jab�"), mas com a media��o decisiva das redes sociais.

    A partir de fonogramas gravados em est�dios caseiros e dos programas de compartilhamento digital de arquivos musicais, os artistas passaram n�o apenas a divulgar amplamente seus trabalhos mas tamb�m a incrementar uma rede de trocas de experi�ncias e de cria��o musical via internet. A cena paulistana de que trata o estudo exemplifica o movimento, bem como essa forma colaborativa de produ��o apoiada em rede de afinidades musicais e pessoais.

    Nela estaria tamb�m desenhada a atual ideia de independ�ncia no que diz respeito � dimens�o fonogr�fica, � promo��o de shows e � busca de financiamento (via editais de fomento e outros programas afins). Hoje, o termo "artista independente" surge quase esvaziado de seu teor hist�rico e relacional. Enquanto os "indies" dos anos 1980, por exemplo, batiam-se contra a l�gica estabelecida (a das grandes gravadoras) –fosse por recusar seus procedimentos, fosse por querer na verdade integr�-la–, os de agora n�o t�m um modelo hegem�nico a lhes servir de antagonista.

    Pouqu�ssimos artistas dessa gera��o buscam ou estabelecem formas de coopera��o com as grandes gravadoras, que, por sua vez, abdicaram da tarefa de revelar promessas. Todos s�o independentes, e essa qualidade apontaria para um tipo de g�nero cultural que confere identidade e prest�gio.

    Precioso para essa configura��o � o cultivo, por todo artista, de um p�blico interessado em novidades musicais que foi expandindo e afinando suas refer�ncias e gostos pela pr�tica constante da pesquisa e do compartilhamento no meio digital. A intera��o direta artista-p�blico forneceria, portanto, o combust�vel essencial ao sistema, que busca sua efic�cia em nichos ou em segmentos espec�ficos da m�sica e do mercado.

    TRANSBORDAMENTO

    Dessas rela��es surge um outro term�metro de sucesso: o �xito passa a ser aferido n�o apenas a partir do n�mero de downloads ou da presen�a em shows mas tamb�m em volume de curtidas, compartilhamentos e resenhas publicadas em blogs especializados em m�sica.

    A lista de artistas representativos da cena citados no livro � ampla e heterog�nea. Para al�m daqueles que, em suas trajet�rias, ajudaram a cunhar esses procedimentos, nela figuram nomes frequentemente referidos na grande imprensa, que se posicionariam ocasionalmente na fronteira com o mainstream, como Marcelo Jeneci, Emicida, Criolo e Tulipa Ruiz.

    S�o m�sicos que aliam a produ��o independente a projetos de grandes empresas ou a parcerias com artistas constitu�dos no �mbito das grandes gravadoras. Esse transbordamento da cena independente revelaria a sua pot�ncia –e o indicador externo constitui dado precioso para a an�lise.

    Vale lembrar que, sobretudo a partir dos anos 1980, tem sido poss�vel observar regularmente a exist�ncia de espa�o destinado �s produ��es independentes nos cadernos de cultura dos grandes jornais brasileiros. Grupos expressivos da atual gera��o, como Met� Met�, Passo Torto e Cidad�o Instigado, n�o s� t�m recebido aten��o desses ve�culos, como t�m surgido com frequ�ncia em rankings de melhores discos do ano.

    Apesar das diferen�as apontadas acima, � poss�vel falar em identidade art�stica ou unidade est�tica quando se trata de definir essa gera��o? Seria essa, de fato, a tantas vezes anunciada "nova MPB"? Rock, MPB, samba, brega, afrobeat, bossa nova, ritmos regionais –desse caldo n�o emergiria um g�nero musical espec�fico?

    Por mais que o di�logo com a MPB constitua a fonte comum –como refer�ncia, e n�o como rever�ncia, segundo um dos entrevistados–, a alcunha "nova MPB" partiria de um referencial, de uma tradi��o da qual alguns nomes fazem quest�o de se descolar.

    A solu��o tem sido a de adotar a defini��o ampla de m�sica brasileira, que contempla v�rios estilos, mas que busca designar um lugar nos desdobramentos contempor�neos da m�sica popular brasileira.
    perman�ncias O autor n�o mede esfor�os para nos mostrar o car�ter de novidade do movimento que analisa. Esquadrinha discuss�es, aponta limites e dificuldades, mas o que seu empreendimento de fato visa � revelar a for�a, o ineditismo e os ganhos conquistados pela cena da m�sica independente.

    Efetivamente, o mundo da produ��o musical sofreu transforma��es surpreendentes e espetaculares nos �ltimos 20 anos, a partir da intera��o com as tecnologias digitais. O modo de produ��o de m�sica gravada que orientou grandes corpora��es durante boa parte do s�culo 20 caducou; o poderio daquelas sofreu fortes (e sucessivos) baques. O ritmo e a intensidade das mudan�as dificultaram sua compreens�o.

    Al�m de contribuir para o entendimento desse novo cen�rio a partir de material original cuidadosamente compilado, o livro provoca a reflex�o sobre perman�ncias. A primeira, tamb�m referida por Rita Morelli na apresenta��o, diz respeito � manuten��o da hist�rica centralidade de S�o Paulo, a cidade moderna que capitaliza talentos, recursos e condi��es estruturais para a gesta��o de movimentos musicais e culturais, como a nova cena independente paulistana. Tem sido assim "desde 1922!" [ano da c�lebre Semana de Arte Moderna], dizia Elis Regina a respeito do assunto, em entrevista citada.

    O exame dessa centralidade busca decantar os elementos necess�rios ao est�mulo e � promo��o cultural que a cidade oferece. No entanto, o fato de que essa imensa ilha chamada S�o Paulo continue mantendo e atraindo para seus encantos talentos nativos e tamb�m os brotados em outras regi�es mostra como se perpetua a profunda desigualdade existente no pa�s, apesar da expans�o verificada em v�rias cenas regionais. A experi�ncia (tratada no livro) do Circuito Fora do Eixo ilustra a complexidade e os limites de iniciativas voltadas a romper esse cerco.

    Mas nada parece ser t�o emblem�tico das contradi��es existentes entre novidades e perman�ncias do que a emerg�ncia da figura denominada por Galletta de "criador-empreendedor". A quest�o continua sendo a elementar: como sobreviver e viver sendo um m�sico independente? Como aproveitar as facilidades trazidas pelo novo "modus operandi" da produ��o musical para conseguir pagar as pr�prias contas?

    O artista passa a gerir todos os aspectos da sua vida profissional, mesmo se contar com o trabalho de um produtor. Al�m das atividades art�sticas propriamente ditas, precisa se dedicar � elabora��o de projetos, contrata��o de shows, busca de financiamento e de oportunidades, conhecimento da opera��o das novas plataformas de difus�o musical, atualiza��o di�ria das p�ginas nas redes sociais e de e-mails –e, na maioria dos casos, dedicar-se a um outro emprego.

    A inclus�o no mercado do segmento que at� ent�o esteve nas bordas vem com cara de fim da divis�o do trabalho, mas n�o coincide com o fim da instabilidade e do prec�rio em termos de produ��o cultural. Essa autogest�o, por�m –desde os primeiros independentes, incluindo o hip-hop e o rap das periferias, at� o atual movimento que alia m�sica e quest�es de g�nero–, pode resultar na autonomia de cria��o; � dela que emana a energia que, em ritmos e com resultados est�ticos variados, tem feito a roda girar.

    MARCIA TOSTA DIAS, 53, � professora do departamento de ci�ncias sociais da Universidade Federal de S�o Paulo.

    Edi��o impressa

    Fale com a Reda��o - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024