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    Marchand que apostou nos impressionistas � homenageado

    JACKIE WULLSCHLAGER
    DO "FINANCIAL TIMES"

    01/03/2015 04h01

    Paul Durand-Ruel se prop�s a criar valor para algo que ningu�m queria e acabou por mudar para sempre a economia do gosto. Com olhar agu�ado e nervos de a�o, foi o primeiro marchand a criar um neg�cio com arte contempor�nea, e durante anos foi o �nico a vender e, com frequ�ncia, o �nico a comprar obras dos impressionistas.

    Ele contraiu empr�stimos para pagar os alugu�is de seus pintores, as contas m�dicas e de alfaiate deles, casando a arte e as finan�as para idealizar um novo paradigma para a compra e venda de cultura: promoveu a individualidade como artigo vend�vel. Monarquista cat�lico que ia � missa todas as manh�s, Durand-Ruel coordenou as carreiras do republicano ateu Claude Monet, do anarquista judeu Camille Pissarro, do antissemita rabugento Edgar Degas e do mis�gino reacion�rio Pierre-Auguste Renoir: um microcosmo de fissuras intelectuais subjacente � Paris do s�culo 19.

    Divulga��o
    Quadro 'Fragmento de Nen�fares', de Claude Monet
    Quadro 'Fragmento de Nen�fares', de Claude Monet

    Quando, em 2012, Larry Gagosian exp�s as pinturas de pontos de Damien Hirst simultaneamente em suas 11 galerias pelo mundo afora, ou quando William Acquavella pagou uma d�vida de jogo de �2,7 milh�es para Lucian Freud, esses marchands de primeira linha de hoje estavam reiterando estrat�gias idealizadas por seu antecessor parisiense. Pioneiro da exposi��o solo, da representa��o de galerias, do hype proposital de nomes espec�ficos, da cria��o de marcas globais e do acesso aberto a exposi��es, Durand-Ruel definiu -para melhor e para pior-o modo como consumimos e entendemos a arte hoje.

    "Inventing Impressionism" (Inventando o Impressionismo), uma mostra fascinante e penetrante que ir� do Mus�e du Luxembourg � National Gallery de Londres em mar�o, conta a hist�ria de Durand-Ruel atrav�s das obras-
    primas que fizeram sua fortuna. A exposi��o cont�m algumas das obras mais amadas pelo p�blico jamais pintadas, al�m de material revelador de arquivo.

    O Mus�e d'Orsay vai ceder as telas em tamanho natural "A Dan�a Campestre" e "A Dan�a na Cidade", de Renoir, odes ao hedonismo e ao prazer democr�tico, que enfeitavam o sal�o de Durand-Ruel, al�m de "Cavalo Diante das Tribunas", o experimento fugaz de Degas com o movimento, feito com tinta de petr�leo, que Durand-Ruel comprou por mil francos e vendeu por 30 mil. Vir� de Filad�lfia o vertiginoso "A Batalha do Kearsage e do Alabama", de Manet, que transformou o g�nero da pintura mar�tima. Os "�lamos", de Monet, foram reunidos a partir de tr�s continentes, ampliados por efeitos de cor e luz ao ponto de se tornarem abstratos -pinturas que foram as primeiras obras em s�rie a serem expostas como uma instala��o �nica. Elas garantiram o sucesso de Monet -"n�o sobrou um �lamo sequer para vender", ele comentou quando a exposi��o chegou ao fim, em 1891-e criaram uma sensibilidade cultural.

    As inova��es est�ticas vistas nestes quadros em muitos casos espelham as transforma��es sociais das quais faziam parte as empreitadas de risco de Durand-Ruel, contestando o monop�lio do Sal�o parisiense do valor art�stico.

    O marchand comprou 23 telas de Manet, que at� ent�o n�o tinha vendido praticamente nada, no dia em que se conheceram, em 1872, e ao longo das tr�s d�cadas seguintes as vendeu pouco a pouco a colecionadores que emergiam da nova classe m�dia endinheirada. Trajando ternos pretos, esses "fl�neurs" s�o vistos movimentando-se entre as faixas chatas artificiais de �rvores e arabescos dourados de cadeiras met�licas industrialmente produzidas em "M�sica no Jardin des Tuileries", de Manet. Durand-Ruel encorajava e explorava precisamente a economia urbana moderna que Manet retratava. Ele vendeu essa tela seminal ao marchand irland�s Hugh Lane em 1906.

    Sua coreografia do impressionismo come�ou, antes mesmo de o movimento ganhar um nome, em Londres, entre um grupo de refugiados da guerra franco-prussiana. Durand-Ruel, que queria ser mission�rio mas, em vez disso, herdou a papelaria e gr�fica de seu pai, foi apresentado pelo pintor Charles-Fran�ois Daubigny, de Barbizon, a Monet, ent�o com 30 anos, com as palavras: "Este artista vai superar n�s todos".

    Em 1871, Monet era uma aposta de alto risco, um pintor pobre e nada vend�vel. A National Gallery tem a tela ic�nica "The Thames below Westminster", com a paisagem envolta pelo nevoeiro matinal, que Monet pintou naquele ano, sob a influ�ncia dos trabalhos de Turner que viu em Londres; ela s� foi vendida em 1877. Ao longo dessa d�cada, depois do retorno de Monet a Argenteuil e da trag�dia na vida do pr�prio Durand-Ruel -ele perdeu sua mulher, nunca se casou novamente e criou seus cinco filhos sozinho–, o marchand em v�rios momentos chegou perto de falir. O apoio ao impressionismo virou sua "religi�o" nova e solit�ria.

    O brilho de luz sobre o Sena em "Barcos Recreativos" e a folhagem castanho-avermelhada brilhando contra a �gua em "Efeito Outonal, Argenteuil" (ambos de 1872-73) representam o apogeu do impressionismo, quando Monet fragmentou a pincelada para capturar vibra��es e reflexos luminosos. As telas "passaram despercebidas por quase todas as pessoas que visitaram nossas galerias", recordou Durand-Ruel, mas ele nunca hesitou; � sugest�o de Monet de cortar os pre�os pela metade, respondeu: "Eu n�o teria vendido mais e n�o teria podido fixar as telas da mesma maneira na mente dos colecionadores".

    O milagre daqueles anos n�o � apenas a maestria com que Monet e Renoir conquistaram a representa��o da luz e o modo como Durand-Ruel compreendeu essa revolu��o -� tamb�m a transmiss�o de alegria para as telas criadas em tempos de grande dificuldade.

    "Mulher Lendo", que Durand Ruel comprou em 1872, representa em pinceladas de cores puras o sol que � filtrado por lilases, com Camille, a mulher de Monet, "vestida de branco e sentada � sombra das folhagens, com seu vestido pontilhado de lantejoulas brilhantes, como gotas d'�gua", na descri��o feita por Zola. "Lavacourt sob a neve" (1878-81), pintado quando Camille estava morrendo, refina o retrato de �gua como neve dura e iridescente. Durand-Ruel enviou esta tela em turn� por S�o Petersburgo, Helsinque, Berlim e Londres como emblema impressionista. Foi o primeiro Monet a entrar para um acervo p�blico brit�nico -em 1915.

    Durand-Ruel n�o falava ingl�s, mas fazia o dinheiro falar. Incentivado por americanos que visitavam sua galeria na Rue Lafitte, em 1886 atravessou o Atl�ntico com 43 engradados de pinturas, e em quest�o de semanas em Nova York vendeu "pinturas que levaram 20 anos para ser apreciadas em Paris".

    "N�o pensem que os americanos s�o selvagens", ele disse a seus artistas hesitantes. "Pelo contr�rio: s�o menos ignorantes e bitolados que nossos colecionadores franceses." Durand-Ruel visitou os Rockefeller, vendeu telas aos Havemeyer, inaugurou uma galeria na Quinta Avenida em 1887 e ponderou que "sem a Am�rica eu teria ficado arruinado, perdido. Gra�as ao p�blico americano, Monet e Renoir puderam sobreviver."

    Os colecionadores do Novo Mundo eram mais ousados, mas tamb�m estavam vendo mais obras: em 1886, Durand-Ruel j� podia apresentar conjuntos inteiros de trabalhos, mostrando o desenvolvimento individual de cada um de seus artistas. "Ele tem obras de Renoir de tal qualidade e em tanta quantidade que nem se pode imaginar!" escreveu Alfred Pope, magnata do ferro de Cleveland.

    Exibidos em seu apartamento de Paris como exposi��o permanente, aberta a visitantes, muitos desses trabalhos foram vendidos � Am�rica por pre�os at� ent�o sequer sonhados pelos filhos de Durand-Ruel pouco ap�s a morte do marchand, em 1922. "The Luncheon of the Boating Party" foi para a Cole��o Phillips por US$125 mil. "Duas Irm�s", uma cena ambientada no mesmo terra�o e com as figuras suavemente fundidas com a paisagem ribeirinha, tinha sido comprada de Renoir por Durand-Ruel por 1.500 francos em 1881 e foi vendida a um colecionador de Chicago por US$100 mil em 1925.

    Monet viveu tempo suficiente para observar essas transa��es. "Sem Durand ter�amos morrido de fome, todos n�s, impressionistas. Devemos tudo a ele", ele disse.

    Desde ent�o, todo movimento art�stico jovem dependeu de um marchand vision�rio para atuar como intermedi�rio p�blico. A maioria, como o soturno e grisalho Durand-Ruel, cujos compradores americanos adoravam seus "modos fascinantes", foram radicais disfar�ados de burgueses, pessoas que, com sua apar�ncia conservadora, levavam os clientes a acreditar que os ultrajes art�sticos mais recentes de seus artistas seriam vend�veis.

    "O que teria sido de n�s se [Daniel-Henry] Kahnweiler n�o tivesse tido tino para os neg�cios?" indagou Picasso, falando do erudito galerista alem�o que salvou os cubistas da fome. Houve Herwarth Walden, que vendeu expressionistas alem�es a partir de seu apartamento espl�ndido em Berlim; o charmoso europeu Leo Castelli, que converteu a pop art americana em fen�meno internacional; o brit�nico Jay Jopling, que vendeu os artistas da gera��o Young British Artists. Todos repetiram a estrat�gia de alto risco e altos retornos da especula��o com nomes desconhecidos. Todos converteram o esc�rnio em triunfo quando seus artistas viraram o novo establishment.

    Vision�rios ou pragm�ticos? "Amo a galeria, a arena da representa��o", diz Jeff Koons. "� um mundo comercial, a moralidade geralmente se baseia na economia, e isso est� acontecendo na galeria de arte."

    Hoje um marchand que tenha toque de Midas precisa refinar o modelo de Durand-Ruel dentro de uma economia da experi�ncia, pr�pria do s�culo 21, em que a cria��o de arte, a performance de arte e o marketing de arte est�o convergindo. David Zwirner, por exemplo, financiou o projeto de Oscar Murillo para levar trabalhadores colombianos para uma f�brica de chocolate constru�da no ano passado em sua galeria em Nova York; colecionadores que queriam comprar pinturas de Murillo sa�ram frustrados.

    Mas, como Durand-Ruel provou, nunca houve regras, exceto, talvez, a de Castelli, segundo a qual a arte "� o que os artistas fazem com ela. N�o precisamos gostar dela, mas n�o podemos descart�-la. Podemos lamentar determinada moda, mas n�o podemos simplesmente dizer 'isso n�o � arte, isso vai desaparecer'."

    Tradu��o de Clara Allain.

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