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    Minha vida: O neurologista diante da morte

    OLIVER SACKS
    tradu��o FRANCESCA ANGIOLILLO

    22/02/2015 03h03

    RESUMO Autor prol�fico de livros populares de divulga��o cient�fica, o neurologista Oliver Sacks descobriu recentemente met�stases, n�o trat�veis, de um c�ncer que tem h� nove anos. Neste texto, ele fala de como quer viver seus �ltimos meses e dos esfor�os necess�rios para fazer o que chama de um acerto de contas com a vida.

    *

    Um m�s atr�s, eu me sentia gozando de boa sa�de; diria at� que de uma sa�de de ferro. Aos 81, ainda nado 1.600 metros por dia. Mas minha sorte se esgotou –h� algumas semanas, soube que tinha m�ltiplas met�stases no f�gado. Nove anos atr�s, descobri que eu tinha um tumor de olho raro, um melanoma ocular. Apesar de as radia��es e do laser para eliminar o tumor terem me deixado cego daquele olho, era muito improv�vel que um tumor daquele tipo se alastrasse. Eu estou entre os 2% desfavorecidos pela sorte.

    Sinto-me grato pelos nove anos produtivos e de boa sa�de que tive ap�s o diagn�stico original, mas agora estou cara a cara com a morte. A doen�a tomou um ter�o de meu f�gado e, ainda que seja poss�vel atrasar seu passo, o avan�o desse tipo particular de c�ncer n�o pode ser impedido.

    Sahm Doherty - 1.jun.86/The LIFE Images Collection/Getty Images
    Oliver Sacks em frente � casa onde passou sua inf�ncia, na Inglaterra
    Oliver Sacks em frente � casa onde passou sua inf�ncia, na Inglaterra

    O que me cabe agora � decidir como viverei os meses que me restam. Devo viv�-los da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder. Nisso sou encorajado pelas palavras de um de meus fil�sofos favoritos, David Hume, que, aos 65 anos, sabendo-se acometido por uma doen�a mortal, escreveu, em um s� dia de abril de 1776, uma breve autobiografia. Ele a intitulou "Minha Vida".1

    "Conto agora com uma morte r�pida", ele escreveu. "Tenho sofrido pouqu�ssima dor advinda de minha doen�a e, o que � mais estranho, apesar do r�pido decl�nio de meu corpo, meu esp�rito nunca se abateu um momento sequer. [...]Possuo o mesmo ardor de sempre pelos estudos, e a mesma alegria na companhia de outras pessoas."

    Tive muita sorte de poder passar dos 80, e os 15 anos que me foram concedidos al�m das seis d�cadas e meia que viveu Hume, eu os vivi de forma t�o plena de trabalho e amor quanto ele. Nesse per�odo, publiquei cinco livros e terminei uma autobiografia, um bocado mais extensa que a dele, a sair nos pr�ximos meses;2 tenho v�rios outros livros quase conclu�dos.

    Hume seguia: "Sou [...] um homem de disposi��o cordial, senhor de si mesmo, de humor franco, social e jovial, capaz de amizade, mas pouco suscet�vel a inimizades e de grande modera��o em todas as suas paix�es".

    Nesse ponto minha experi�ncia se afasta da dele. Embora eu tenha vivido amores e amizades e n�o tenha inimizades reais, n�o posso dizer (nem ningu�m que me conhece poderia) que sou um homem de disposi��o cordial. Ao contr�rio, meu car�ter � veemente, sou capaz de me entusiasmar de forma violenta e sou extremamente imoderado no que diz respeito a qualquer de minhas paix�es.

    Ainda assim, uma linha do ensaio de Hume me parece especialmente verdadeira: "� dif�cil", escreve, "sentir maior distanciamento da vida do que este que sinto neste momento".

    Ao longo dos �ltimos dias, eu pude ver minha vida como se a observasse desde uma grande altitude, como se ela fosse uma esp�cie de paisagem, e com a percep��o cada vez mais aguda da conex�o entre todas as suas partes. Isso n�o quer dizer que eu tenha dado minha vida por encerrada.

    Ao contr�rio: sinto-me intensamente vivo, e quero e espero que, no tempo que resta, eu possa aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que amo, escrever mais, viajar, se tiver for�a para tanto, alcan�ar novos graus de entendimento e de discernimento.

    Isso vai requerer aud�cia, clareza e franqueza; � uma tentativa de acertar as contas com o mundo. Mas haver� tempo, tamb�m, para divers�o (e at� mesmo para um tanto de tolices).

    Sinto uma s�bita nitidez de foco e de perspectiva. N�o h� tempo para nada que n�o seja essencial. Preciso me concentrar em mim, no meu trabalho, nos meus amigos. N�o vou mais assistir ao notici�rio na televis�o toda noite. N�o darei mais aten��o alguma � pol�tica ou ao aquecimento global.

    Isso n�o � indiferen�a, mas distanciamento –eu ainda me preocupo muito com o Oriente M�dio, aquecimento global, o crescimento da desigualdade, mas esses assuntos n�o me cabem mais; eles cabem ao futuro. Eu me alegro quando encontro gente jovem e talentosa –inclusive a que fez a bi�psia que constatou minhas met�stases. Eu sinto que o futuro est� em boas m�os.

    Fiquei mais e mais atento, nos �ltimos dez anos, � morte de contempor�neos meus. Minha gera��o est� de sa�da, e cada uma dessas mortes eu senti de forma abrupta, como se uma parte de mim me fosse arrancada. N�o haver� mais ningu�m como n�s quando todos n�s tivermos ido embora, mas � um fato que n�o h� no mundo ningu�m igual a outra pessoa, nunca. Quando algu�m morre, n�o existe um substituto poss�vel. Cada um deixa um vazio que n�o pode ser preenchido, pois � o destino –gen�tico e neural–de cada humano ser um indiv�duo �nico, que deve achar seu pr�prio caminho, viver sua pr�pria vida e morrer sua pr�pria morte.

    N�o posso fingir n�o ter medo. Mas o sentimento que predomina em mim � a gratid�o. Eu amei e fui amado; tive muito e dei muito em troca; eu li, e viajei, e pensei, e escrevi. Eu tive com o mundo o relacionamento especial que os escritores e os leitores t�m com ele.

    Acima de tudo, eu fui um ser senciente, um animal pensante sobre este belo planeta, o que, por si s�, j� foi um enorme privil�gio e uma aventura.

    Notas

    1. O ensaio autobiogr�fico de David Hume (1711-76) foi publicado no Brasil no livro "Da Imortalidade da Alma e Outros Textos P�stumos" (ed. Uniju�, 2006). Os trechos citados por Oliver Sacks seguem, aqui, a tradu��o de Daniel Swoboda Murialdo para o citado volume, salvo quanto ao termo "detachment". L� traduzido como "desinteresse", tem tamb�m a acep��o de "distanciamento", mais apropriada ao que descreve Sacks.

    2. A autobiografia de Oliver Sacks ser� publicada pela Companhia das Letras em data a definir, ainda em 2015.

    OLIVER SACKS, 81, � m�dico neurologista e escritor.

    FRANCESCA ANGIOLILLO, 42, � editora-adjunta da "Ilustr�ssima".

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