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    O que ser� da mente se m�quinas pensarem?

    MARCELO GLEISER

    01/02/2015 03h13

    RESUMO A busca do ser humano por ampliar sua capacidade f�sica e intelectual deu origem a tecnologias transhumanas. Apesar disso, as m�quinas n�o devem ser capazes de destruir a humanidade, j� que s� conseguir�o evoluir junto ao c�rebro que conhecemos hoje, sem uma intelig�ncia superior independente.

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    Considere a seguinte situa��o: voc� acorda atrasado para o trabalho e, na pressa, esquece o celular em casa. S� quando engavetado no tr�fego ou amassado no metr� voc� se d� conta. E agora � tarde para voltar. Olhando em volta, voc� v� pessoas com celular em punho conversando, mandando torpedos, navegando na internet. Aos poucos, voc� vai sendo possu�do por uma sensa��o de perda, de desconex�o. Sem o seu celular, voc� n�o � mais voc�.

    A jun��o do humano com a m�quina � conhecida como "transhumanismo". Tema de v�rios livros e filmes de fic��o cient�fica, hoje � um t�pico essencial na pesquisa de muitos cientistas e fil�sofos. A quest�o que nos interessa aqui � at� que ponto essa jun��o pode ocorrer e o que isso significa para o futuro da nossa esp�cie.

    Ser� que, ao inventarmos tecnologias que nos permitam ampliar nossas capacidades f�sicas e mentais, ou mesmo m�quinas pensantes, estaremos decretando nosso pr�prio fim? Ser� esse nosso destino evolucion�rio, criar uma nova esp�cie al�m do humano?

    � bom come�ar distinguindo tecnologias transhumanas daquelas que s�o apenas corretivas, como �culos ou aparelhos de surdez. Tecnologias corretivas n�o t�m como fun��o ampliar nossa capacidade cognitiva: s� regularizam alguma defici�ncia existente.

    A diferen�a ocorre quando uma tecnologia n�o apenas corrige uma defici�ncia como leva seu portador a um novo patamar, al�m da capacidade normal da esp�cie humana. Por exemplo, bra�os rob�ticos que permitem que uma pessoa levante 300 quilos, ou �culos com lentes que dotam o usu�rio de vis�o no infravermelho. No caso de atletas com defici�ncia f�sica, a quest�o se torna bem interessante: a partir de que ponto uma pr�tese como uma perna artificial de fibra de carbono cria condi��es al�m da capacidade humana? Nesse caso, ser� que � justo que esses atletas compitam com humanos sem pr�teses?

    Poderia parecer que esse tipo de hibridiza��o entre tecnologia e biologia � coisa de um futuro distante. Ledo engano. Como no caso do celular, est� acontecendo agora. Estamos redefinindo a esp�cie humana atrav�s da intera��o -na maior parte ainda externa- com tecnologias que ampliam nossa capacidade.

    Sem nossos aparelhos digitais -celulares, tabletes, laptops- j� n�o somos os mesmos. Criamos personalidades virtuais, ativas apenas na internet, outros eus que interagem em redes sociais com selfies arranjados para impressionar; cria��es remotas, onipresentes. Cientistas e engenheiros usam computadores para ampliar sua habilidade cerebral, enfrentando problemas que, h� apenas algumas d�cadas, eram considerados imposs�veis. Como resultado, a cada dia surgem quest�es que antes nem pod�amos contemplar. O ritmo do progresso cient�fico est� diretamente relacionado a nossa alian�a � m�quinas digitais.

    Somos j� transhumanos.

    Aonde isso nos levar�? Em livro recente, o fil�sofo sueco Nick Bostr�m, professor na Universidade de Oxford, no Reino Unido, soa o alarme: se criarmos intelig�ncias superiores � nossa, poderemos nos tornar obsoletos.
    Em "Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies" [Oxford University Press, 352 p�gs., R$ 110; e-book R$ 44,45] (Superintelig�ncia: caminhos, perigos, estrat�gias), Bostr�m faz uma analogia entre n�s e gorilas e entre n�s e as intelig�ncias artificiais sobre-humanas: do mesmo modo que a sobreviv�ncia dos gorilas depende de nossa benevol�ncia, se m�quinas mais inteligentes e poderosas do que n�s existirem, nossa sobreviv�ncia depender� delas. O que garante que elas nos preservar�o? � o mito do Frankenstein revisitado, cientistas criando nosso fim. Considerando, claro, a premissa de que seja poss�vel criar tais m�quinas superinteligentes.

    Nisso, a comunidade cient�fica e filos�fica est� dividida. De um lado, temos os que acreditam que � apenas quest�o de tempo: assim como a natureza "criou" ao menos uma esp�cie inteligente (sim, golfinhos, baleias, cachorros e gatos s�o inteligentes, mas n�o desenharam computadores ou sondas espaciais, ou escreveram sinfonias e poesia), n�o h� qualquer empecilho fundamental para que possamos repetir a fa�anha, criando outras entidades inteligentes. As leis da natureza n�o pro�bem a constru��o de intelig�ncias artificiais.

    Cr�ticos rebatem dizendo que a quest�o n�o � assim t�o simples. Primeiro, n�o sabemos exatamente o que � a intelig�ncia. E, se n�o temos uma defini��o, fica bem dif�cil recri�-la artificialmente. Por exemplo, o supercomputador da IBM Deep Blue, que ganhou do campe�o mundial de xadrez Garry Kasparov em 1997, n�o era inteligente. Ao menos n�o no sentido de ser uma entidade aut�noma, capaz de tomar suas pr�prias decis�es. O Deep Blue reunia uma velocidade incr�vel de processamento de informa��o com um programa altamente sofisticado de sele��o de estrat�gias, escolhendo seus movimentos com base num processo refinado de otimiza��o. A intelig�ncia era de seus programadores, e n�o da m�quina em si.

    Na Europa e nos EUA, duas grandes iniciativas tentam criar uma m�quina inteligente baseada na desconstru��o do c�rebro humano. Em ess�ncia, trata-se de mapear o c�rebro minuciosamente, detalhando cada neur�nio, suas liga��es sin�pticas com outros neur�nios (sua "cognitividade"), o fluxo de subst�ncias neurotransmissoras de neur�nio a neur�nio, recriando toda essa informa��o num gigantesco programa de computador, uma simula��o do c�rebro humano em uma entidade de sil�cio.

    Uma pesquisa fascinante, que leva a uma pergunta essencial: como saber que temos toda a informa��o requerida para recriar um c�rebro humano, o objeto mais complexo do universo conhecido?

    MAPA

    No famoso conto "Sobre o Rigor na Ci�ncia", de Jorge Luis Borges, observa-se que um mapa perfeito, contendo todos os detalhes do original, teria que ser do tamanho do que se prop�e a mapear, sendo, portanto, in�til. No caso do mapeamento do c�rebro, esse tipo de iniciativa � extremamente importante e v�lida, e nos trar� muita informa��o valiosa sobre seu funcionamento e estrutura. Mas seu objetivo final, a compreens�o completa do c�rebro humano, me parece um mito.

    Afinal, sabemos que nossa aferi��o do que existe � sempre limitada: o que vemos do mundo, mesmo com nossos instrumentos, jamais � tudo o que poderia ser visto. Portanto qualquer simula��o de uma entidade real ser� necessariamente incompleta. No m�ximo, podemos tentar captar o essencial, recriando um modelo parcial do que existe -e talvez n�o seja poss�vel concluir que esse modelo parcial teria fun��es cognitivas id�nticas ao c�rebro real; nem mesmo sabemos se podemos entender o c�rebro destitu�do do corpo que comanda.

    Ainda que programas de computador cheguem a ser inteligentes, sua intelig�ncia n�o ser� como a nossa. Ser� uma outra coisa, desprovida de um corpo. E o que � um humano sem um corpo? Imposs�vel contemplar. O que � uma intelig�ncia que n�o sofre ou sente dor? At� que ponto essas emo��es podem ser capturadas num programa, numa sequ�ncia de instru��es? Esse objetivo -a constru��o de m�quinas aut�nomas inteligentes- parece bem mais distante do que o fato j� em curso da nossa hibridiza��o com tecnologias que expandem nossas habilidades cognitivas.

    No filme "Ela" [dir. Spike Jonze, EUA, 2013, Sony, 125 min., 14 anos, DVD R$ 39,90, Blu-ray R$ 69,90], um homem se apaixona por uma m�quina, um sistema operacional inteligente capaz de aprender com a informa��o que recebe. A hist�ria � tr�gica, explorando a solid�o humana e como a tecnologia do futuro -� medida em que nos definimos pelas nossas intera��es com os outros- ir� redefinir quem somos. Ao menos no filme, os "outros" poder�o n�o ser mais humanos.

    Apesar da beleza do filme, � bom n�o confundi-lo com a realidade. Como argumentei acima, � muito poss�vel que a premissa das m�quinas inteligentes, ou mais inteligentes do que n�s, seja falsa. Bem mais prov�vel que o futuro da intelig�ncia esteja dentro do c�rebro humano, e n�o fora. Seremos n�s, ou nossos h�bridos, a nos tornarmos superinteligentes, estendendo nossa capacidade mental atrav�s da uni�o do biol�gico com o cibern�tico.

    O futuro n�o est� nas m�quinas, mas na intelig�ncia humana artificialmente ampliada. N�o estamos desenhando nosso fim, mas uma nova esp�cie, capaz de transcender os limites evolucion�rios que determinam o funcionamento do c�rebro e do corpo. Com isso, n�o devemos temer o futuro da pesquisa em intelig�ncia artificial, mas v�-la como uma oportunidade de emancipa��o, de crescimento da esp�cie. Certamente, nossos descendentes ser�o mais inteligentes e, esperemos, mais s�bios.

    MARCELO GLEISER, 55, � professor titular de f�sica, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente � "A Ilha do Conhecimento" (Record).

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