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    Viagem pela mem�ria de campos de concentra��o no Cear�; veja v�deo

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    fotografia ISADORA BRANT

    30/11/2014 03h06

    RESUMO Com as secas do in�cio do s�culo 20, famintos dirigiam-se � capital do Cear�, assombrando as elites que idealizavam uma Fortaleza "belle �poque", moderna -e limpa. O governo criou campos cercados para confinar milhares de retirantes; hoje, alguns tentam evitar que a mem�ria desses lugares se apague.

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    Uma coisa era certa: aquela gente fedida, piolhenta, faminta e desesperada tinha que ser mantida � dist�ncia. Era 1932, e Fortaleza n�o parecia disposta a olhar para tr�s. Na virada do ano, a capital cearense inaugurava o hotel Excelsior, seu primeiro arranha-c�u. Em sua edi��o de 2 de janeiro, o jornal "O Povo" destacava o "terra�o aprazibil�ssimo, de onde se descortinam bel�ssimos panoramas do mar, das serras e dos sert�es vizinhos".

    O novo pr�dio anunciava novos tempos e contrastava com a precariedade da multid�o imigrante dos "sert�es vizinhos", que fugia de uma das piores secas j� vistas no Nordeste. Algu�m precisava fazer algo, e r�pido, antes que a turba miser�vel eclipsasse a "loira desposada do sol", ep�teto da capital oxigenada pela s�ndrome de "belle �poque" brasileira. A resposta governamental foi confinar os que vinham de trem em sete currais cercados com varas e arame farpado, pr�ximos � estrada de ferro.

    Veja v�deo

    Eram homens, mulheres, velhos e crian�as, de cabe�a raspada contra piolhos, alguns vestidos em sacos de farinha com buracos para enfiar o pesco�o. Os mais robustos serviam de m�o de obra em fazendas e obras p�blicas. Milhares morreram de fome, sede ou doen�as. Com entrada compuls�ria e sem data para o "check out", esses dep�sitos humanos tinham nome: campos de concentra��o.

    S� em 1933 os nazistas criariam seu primeiro campo, numa f�brica de p�lvora reestruturada para encarcerar comunistas, sindicalistas e outros desafetos do chanceler Adolf Hitler. A pr�tica de isolar os "molambudos" dos "cidad�os de bem" j� era velha conhecida no Brasil de Get�lio Vargas -um pa�s em que a popula��o caminhava para os 40 milh�es.

    Dados oficiais contavam 73.918 aprisionados pouco mais de um m�s ap�s a abertura dos campos em seis cidades do Cear� (Crato, Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, Cari�s e Fortaleza), conforme relata a historiadora K�nia Sousa Rios, autora de "Campos de Concentra��o no Cear�: Isolamento e Poder na Seca de 1932" (Museu do Cear�, 2006). As duas aglomera��es da capital viraram at� atra��o tur�stica: visitantes doavam uma certa quantidade de dinheiro aos enjaulados e dali sa�am com "a sensa��o de dever cumprido".

    "O risco de ter a cidade invadida pela 'sombra sinistra da mis�ria' parece seguido da compreens�o de que a situa��o � tr�gica, portanto merece a aten��o da burguesia caridosa e civilizada", escreveu a historiadora no artigo "A Cidade Cercada na Seca de 1932" (publicado no volume "Seca", Edi��es Dem�crito Rocha, 2002).

    ESMOLINHA

    No romance "O Quinze", Rachel de Queiroz narra como a hero�na Concei��o "atravessava muito depressa o campo de concentra��o", tr�mula ao ouvir a s�plica: "Dona, uma esmolinha". Apertava o passo, "fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento".

    Algo de fato cheirava mal no Cear�, e desde a grande estiagem de 1877, a elite local sentia o odor. Sete anos antes, haviam sido estabelecidas normas de conduta "que identificavam a 'modernidade fortalezense' com a 'civilidade europeia'", fazendo da capital "um modelo ass�ptico para todas as cidades cearenses", escreveu o historiador Tan�sio Vieira no artigo "Seca, Disciplina e Urbaniza��o" (tamb�m coligido em "Seca"). Uma das proibi��es fixadas era a de sair �s ruas sem "pelo menos camisa e cal�a, sendo aquela metida por dentro desta".

    Imposi��es dessa ordem eram a �ltima coisa a passar pela cabe�a dos mais de 100 mil sertanejos em retirada da seca de 1877. Fortaleza, ent�o com 30 mil habitantes, viu sua popula��o se multiplicar por tr�s. O governo, por sua parte, redobrou esfor�os para que a invas�o b�rbara jamais se repetisse.

    Isadora Brant/Folhapress
    Dona Carm�lia, cujo pai trabalhava em um dos campos
    Dona Carm�lia, cujo pai trabalhava em um dos campos

    Em "A Seca de 1915", o escritor Rodolfo Te�filo (1853-1932) descreveu o pioneiro campo do Alagadi�o, nos arredores da capital, que serviria de piloto para os sete campos dos anos 1930: "Um quadril�tero de 500 metros onde estavam encurralados cerca de 7.000 retirantes". L�, quando havia comida, ganhavam "reses que morriam de magras ou do mal [peste]", cozidas "em algumas d�zias de latas que haviam sido de querosene".

    O jornal "O Nordeste" anunciava o 17 de fevereiro de 1923 como o Dia da Extin��o da Mendic�ncia. Ser mendigo seria, a partir dali, contra a lei. Se ruas e pra�as continuassem "expostas a graves perigos de ordem moral", os infratores seriam enviados ao Dispens�rio dos Pobres, sob os ausp�cios da Liga das Senhoras Cat�licas Brasileiras. A ideia, na pr�tica, n�o foi longe, e as madames continuaram a ouvir: "Dona, uma esmolinha".

    Nem toda a caridade crist� seria o bastante para dar conta da di�spora de 1932, quando jornais falavam do "ex�rcito sinistro de esfomeados" em marcha at� a capital.

    PAPA-FIGO

    Ainda hoje, em Senador Pompeu, circula a lenda sobre um ente que surge de supet�o para abrir seu bucho e roubar um peda�o do f�gado. A f�bula do Papa-Figo nasce de fatos reais. Carm�lia Gomes, 91, que era uma menina em 1932, lembra do m�dico que extra�a amostras do �rg�o de quem morria no campo e as mandava � capital para an�lise cl�nica.

    Dentro de sua casinha, semelhante a tantas outras nas redondezas, dona Carm�lia prende os cabelos brancos e senta-se numa cadeira de pl�stico roxo, logo abaixo de p�steres dos papas Jo�o Paulo 2� e Bento 16. Ela conta que, at� sofrer um assalto, vivia num terreno mais ermo, terra onde seu pai trabalhava 82 anos atr�s.

    Isadora Brant/Folhapress
    Ru�nas do campo de concentra��o de retirantes de Senador Pompeu
    Ru�nas do campo de concentra��o de retirantes de Senador Pompeu

    Ant�nio Gomes se despedia com um beijo na testa da mocinha de nove anos e partia para o of�cio: vigiar os concentrados de Senador Pompeu. Voltava para casa contando sobre "lagartixas entrando na boca dos defuntos, tudim inchado por causa da fome". Alguns guardas eram t�o temidos que viravam sin�nimo de "coisa ruim". Caso do cabo F�lix, que acabou nomeando o feij�o servido ali, duro feito pedra da caatinga.

    Senador Pompeu, � primeira vista, � uma cidade com problemas e h�bitos corriqueiros; adolescentes tiram selfies na sorveteria, e casas metade verde, metade rosa exibem na fachada propagandas pol�ticas pintadas � m�o. Mas ali, como dona Carm�lia, muitos se esfor�am para lembrar o passado.

    Em um blog que leva seu nome, Valdecy Alves, 51, apresenta-se em mai�sculas: ADVOGADO MILITANTE E MILITANTE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, com servi�os prestados � C�ritas e ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antonio Conselheiro. Filho pr�digo de Senador Pompeu, hoje em Fortaleza, voltou � cidade natal para a romaria de 9 de novembro.

    Com in�cio marcado para as 4h30 daquele domingo, em frente � igreja, o cortejo re�ne netos, pais e av�s, todos de branco, para homenagear "as almas penadas da barragem", mortas no campo de concentra��o. Hoje, segundo a crendice do povo, elas viraram santas que atendem a promessas, numa vers�o, local e diminuta, do culto ao padre C�cero.

    Na v�spera, Valdecy Alves nos levara aos arredores da barragem onde os retirantes foram enclausurados. Existe ali um cemit�rio, ponto de chegada da romaria. O espa�o � simb�lico: foi erguido sobre uma das valas comuns, onde "at� 40 defuntos eram sepultados sem atestado de �bito, em covas rasas o bastante para que urubus e c�es cavassem e comessem os restos", diz Alves.

    O cemit�rio, um quadril�tero de 1.089 m�, tem no centro uma capela. � sua frente, visitantes acendem velas e empilham simb�licas garrafas d'�gua de 500 ml. Na entrada, alguns santinhos pol�ticos e latas de cerveja se acumulam diante de duas mudas de �rvore. L�-se nos vasos de cimento: "Fale a Deus o tamanho do seu problema".

    Isadora Brant/Folhapress
    Cemit�rio em Senador Pompeu
    Cemit�rio em Senador Pompeu

    Em sua moto preta com o rosto de Jesus estampado na buzina, Francisco de Assis, 48, chega ao local para pintar de branco os muros do cemit�rio. Ele � um dos que -garante- foram ouvidos pelos santos. Para quitar seu carn� espiritual, caminhou por uma hora, descal�o, at� o cemit�rio. Valdecy Alves frisa: "De cada dez pessoas que voc� encontrar nas ruas, metade deve promessa aqui".

    A hist�ria do campo de concentra��o de Senador Pompeu j� era ligada � seca desde antes desse destino infame. Em 1919, ingleses ganharam uma concorr�ncia para levantar no local uma barragem para sanar os efeitos da escassez de chuvas. Por falta de verbas, as obras pararam. Em 1932, o governo integrou ao campo o casar�o que fora constru�do para servir de morada aos estrangeiros.

    A carca�a arquitet�nica tem paredes amarelas pichadas com dezenas de falos, juras de amor (Stefanny, o Renato te ama) e at� um Buda gordinho. Nos anos 1990, o lugar ainda era uma refer�ncia para retirantes. Fam�lias faziam filas quilom�tricas para obter a parte que lhes cabia nesse latif�ndio –por��es de farinha, charque, rapadura e caf� que o governo distribu�a.

    Valdecy cruza os bra�os sobre a camisa polo vermelha e ergue o queixo, um tanto solene. "Kant dizia que n�o h� liberdade enquanto voc� tiver necessidade. O povo h� s�culos � v�tima de uma seca previs�vel, c�clica. Ent�o, o Estado � que est� falido."

    E desmemoriado tamb�m: o advogado cobra a preserva��o das ru�nas e reclama de que "documentos gigantescos de uma �poca que n�o pode se repetir" est�o � m�ngua. Procurado, o Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional diz que "n�o h� proposta de tombamento em n�vel federal". No plano municipal, a prefeitura abriu um processo com essa finalidade, ainda n�o finalizado.

    CAMINHADA

    Alves tem companhia no seu esfor�o de tirar o passado do arm�rio. Enquanto outras cidades ignoram seus campos, em Senador Pompeu um carro de som alterna an�ncios do "forroz�o" e da "caminhada da seca".

    De �culos escuros e celular acoplado a alto-falantes, o padre come�a a romaria na madrugada de domingo. H� velhinhos de bengala, mulheres com crucifixos mergulhados em grandes decotes e estudantes que usam "abad�" –regata com a inscri��o "32� caminhada da seca - Eu fui" e a estampa de um polegar que reproduz o bot�o "curtir" do Facebook.

    "O povo diz que quem morreu de fome vira santo", diz Yasmin dos Santos, 11, repetindo o que ouviu numa palestra na escola. Daiana Soraya, 12, � grata �s "almas santas", que a ajudaram com uma briga de escola. "Um menino que j� tinha namorada ficou falando comigo. Ela achou que eu estava a fim dele. Queriam me pegar, mas eu fiz uma promessa. Hoje t� pagando", diz a jovem devota, mostrando os p�s descal�os.

    RELATOS

    J� no Crato s�o poucos os que se lembram do campo projetado para 5.000 pessoas –e que chegou a receber quatro vezes isso, segundo relatos de sobreviventes.

    "A m�e falava que a comida era t�o ruim que n�o tinha quem comesse. Mas chegou um pessoal e quis as tripas de porco e gado que o v� usava para fazer sab�o. Estavam at� estragadas", conta Rita Lobo de Grito, 66, que andava por uma rua de terra pr�xima ao local do antigo campo cratense.

    "Jogavam um em cima do outro quando o pessoal morria. No outro dia, de manh�, um pediu: Me tira daqui que eu n�o t� morto, n�o'. Tudo isso meu pai contava", diz Milton Pereira, 85, que recorda tamb�m a corrup��o no controle dos mantimentos. "Enquanto uns morriam de fome, outros enricavam. O governo mandava trazer o gado e sumia a metade."

    Com duas est�tuas do padre C�cero ("primo do meu pai") no jardim, Rosafran de Brito Melo, 67, diz que os campos tinham raz�o de ser. "Pra n�o haver briga. Ou virava bagun�a. Entre tantas fam�lias, sempre vem um meio danado."

    Almina Arraes, 90, n�o via nada de danado na gente que aparecia no casar�o de sua fam�lia, �s vezes tomada por retirantes fugidos dos campos.

    Em menos de cinco minutos, o sorvete de creme que nos serve vira uma papa amarelada dentro da ta�a de prata. O calor no Crato, definitivamente, n�o � para amadores, mas a irm� do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes (1916-2005) j� est� acostumada.

    Hoje ela mora ali com uma irm� de 95 anos, que sofre de Alzheimer. E mant�m uma "sala dos mortos", com retratos do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes (1916-2005), e do neto dele, Eduardo Campos (1965-2014). A poucos metros dali, na varanda com gnomos de jardim, ela conta sobre os sete irm�os Arraes que migraram da vizinha Araripe para estudar no Crato.

    Lembra de brincar com "uma crian�a muito magrinha, que gritava quando via comida". Brincou com ela de xibiu, jogo com o coco de maca�ba, palmeira da regi�o.

    Almina preserva suas mem�rias, mas a "amn�sia" em rela��o ao passado prevalece.

    "� um resqu�cio da cultura coronelista", avalia Luciana de Medeiros Campos, 36, funcion�ria da Secretaria Municipal de Cultura que nos acompanha em passeio pela regi�o. N�o interessa � elite cratense mexer nessa ferida, afinal, muitos "v�s" e "v�s" foram coniventes com o campo de concentra��o e o cemit�rio das valas comuns.

    Hoje eles est�o ocultos sob uma f�brica de papel e um singelo campinho de futebol.

    Ap�s a seca de 1877, o imperador dom Pedro 2� decretou: "N�o restar� uma �nica joia na Coroa, mas nenhum nordestino morrer� de fome".

    Em 1933, voltaram as chuvas para o Cear�, e os sertanejos pra casa, com passagens bancadas pelo governo. Segue o seco.

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    DESTERRO Nos 600 km que cruzou, a reportagem foi acompanhada pela curadora Beatriz Lemos, 33, e pelo artista pl�stico �caro Lira, 28. Fortalezense radicado em S�o Paulo, Lira lan�ou na Bienal da Bahia, em maio, seu projeto "Desterro", que come�ou com Canudos e agora recupera o passado dos campos de concentra��o do Cear�. "Meu papel � trazer � tona o processo de apagamento oficial do Estado", diz o artista.

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER, 27, � jornalista da Folha. Assina o blog "Religiosamente" no site do jornal.

    ISADORA BRANT, 28, � rep�rter fotogr�fica da Folha e produz, em sua Vibrant Editora, publica��es independentes, como zines e fotolivros.

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