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    Aos 79 anos, morre Luiz Carlos Maciel, jornalista e pensador da contracultura

    CLAUDIO LEAL
    COLABORA��O PARA A FOLHA

    09/12/2017 15h35

    Principal ensa�sta e pensador da contracultura no Brasil, o jornalista, diretor teatral e roteirista Luiz Carlos Maciel morreu na manh� deste s�bado (9), aos 79 anos, no hospital Copa D'Or (Copacabana), no Rio de Janeiro, onde estava internado desde 26 de novembro com um quadro de infec��o. Maciel sofria, nos �ltimos meses, com o agravamento da doen�a pulmonar obstrutiva cr�nica (DPOC). Segundo a filha do escritor, L�cia, o boletim m�dico apontou fal�ncia m�ltipla dos �rg�os. At� o momento, n�o h� informa��es sobre o vel�rio.

    O ensa�smo de Maciel articulou a contracultura brasileira com escritores e agitadores internacionais, anti ou extra-acad�micos, e contribuiu para torn�-la mais consciente de si pr�pria, ao informar sobre ideias insurgentes e movimentos de vanguarda dos anos 60 e 70. Seus textos no "Pasquim", "Flor do Mal", "�ltima Hora" e "Fairplay" influenciavam adeptos do desbunde, esquerdistas menos ortodoxos e jovens aflitos para "cair fora" e encontrar um novo estilo de vida.

    O esp�rito contracultural se manifestou em Maciel ainda na faculdade de Filosofia, em Porto Alegre (RS), onde nasceu em 15 de mar�o de 1938. Aproximou-se do existencialismo de Sartre e do teatro do absurdo, encenando "Esperando Godot", de Samuel Beckett, com Lineu Dias, M�rio de Almeida, Paulo Jos� e Paulo C�sar Pereio, do Teatro de Equipe. Autor do ensaio "Sartre, Vida e Obra" (1967), Maciel destacaria a relev�ncia do fil�sofo franc�s em sua transi��o para a vida adulta, por despert�-lo para a liberdade e a responsabilidade.

    Arquivo pessoal
    Luiz Carlos Maciel - Ilustrissima - n�o usar - arquivo pessoal (fonte Claudio Leal) ***DIREITOS RESERVADOS. N�O PUBLICAR SEM AUTORIZA��O DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Retrato de Luiz Carlos Maciel

    Confiante na profecia do amigo Glauber Rocha de que a Bahia lideraria uma revolu��o cultural, ele decidiu mudar-se para Salvador e assumir uma cadeira de professor da Escola de Teatro, em 1959. Na capital baiana, dirigiu uma montagem elogiada da pe�a cabralina "Morte e Vida Severina" e foi o protagonista do homoer�tico "A Cruz na Pra�a" (1959), o curta desaparecido de Glauber, que lhe confiaria, perto de morrer, os originais da pe�a "Jango: Uma Tragedya".

    Em 1960, com uma bolsa da Funda��o Rockefeller, Maciel partiu para o Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. O mergulho na vida americana enriqueceu o repert�rio de autores e tend�ncias comportamentais da futura e legend�ria coluna "Underground" no seman�rio humor�stico "Pasquim", do qual tornou-se um dos fundadores a convite do jornalista Tarso de Castro. Entre 1969 e 1972, Maciel era o recordista de cartas da reda��o, como reconheceu o cartunista Jaguar, e passou a ser chamado de "guru da contracultura", um ep�teto aceito a contragosto e fortalecido depois do texto "Conselhos a mim mesmo", em que recomendava: "1. Escuta o canto do ser. Ele tem mais de mil vozes. Olha a dan�a do ser. Ela tem mais de mil passos".

    Na "Underground", e tamb�m em artigos para a grande imprensa, Maciel apresentou o zen-budismo de Alan Watts, os testes com LSD do escritor americano Ken Kesey, Timothy Leary e os benef�cios terap�uticos das experi�ncias psicod�licas, os odiados Hell's Angels, "Eros e Civiliza��o" de Herbert Marcuse, a a��o pol�tica do poeta beat Allen Ginsberg e o Gay Liberation Front da Calif�rnia (em confronto com Ginsberg).

    Mais: o hipster segundo Norman Mailer, o Living Theatre, o romancista alem�o Hermann Hesse, os Panteras Negras, Wilhelm Reich e a revolu��o sexual, Carlos Castaneda e os ensinamentos do bruxo Don Juan, as interpreta��es hist�rico-psicanal�ticas de Norman O. Brown. Assimilou g�rias dos desbundados e comentou as religi�es orientais, o rock, o jazz, a antipsiquiatria, a anti-universidade, a libera��o sexual, o feminismo de Yoko Ono, a maconha e o movimento hippie, al�m de fazer perfis de artistas como Bob Dylan, Jimi Hendrix, Richie Havens, Santana e —entrevistou-a no Rio, junto com H�lio Oiticica— Janis Joplin. Antecipou-se em d�cadas �s campanhas nacionais contra pol�ticas repressivas a usu�rios de drogas. Era uma florida revolu��o dentro da revolu��o cultural do Pasquim no jornalismo brasileiro.

    Em oposi��o ao machismo confesso de outros membros do "Pasquim", ele simpatizava com os gays, os hippies, as feministas e os tropicalistas. Perto de embarcar para o ex�lio em Londres, em 1969, o compositor Caetano Veloso recebeu de Maciel a tarefa de enviar artigos para o seman�rio, uma colabora��o bem-vinda para quebrar o gelo pol�tico em torno do grupo baiano. Gilberto Gil e Jorge Mautner tamb�m seriam acolhidos por suas p�ginas no per�odo. No final de 1970, o Ex�rcito prendeu a equipe do humor�stico e Maciel teve a grossa cabeleira cortada na Vila Militar.

    Cabelos crescidos, ele deixou o "Pasquim" em 1972, pressionado pelo humorista Mill�r Fernandes, inimigo e substituto de Tarso na chefia. Antes da despedida, estimulado por S�rgio Cabral, criou e editou o nanico "Flor do Mal", ao lado de Rog�rio Duarte, Torquato Mendon�a e Tite de Lemos. Imerso de vez no jornalismo, comandou a edi��o brasileira da revista "Rolling Stone", outra experi�ncia de vida curta, e colaborou com ve�culos como "Correio da Manh�", "Jornal do Brasil", "O Jornal", "Fatos e Fotos" e "Veja". Na Folha, a pedido de Tarso, escreveu para o caderno "Folhetim". Na "Ilustr�ssima", em 2015 e 2016, publicou seus �ltimos textos na imprensa.

    NOVA CONSCI�NCIA

    Os ensaios contraculturais de Maciel saltaram dos jornais para duas colet�neas populares nos anos 70: "Nova Consci�ncia" (1972) e "A Morte Organizada" (1975), complementados adiante pelo volume "Neg�cio Seguinte" (1978). A tens�o entre cultura e contracultura, poder e antipoder, liberdade e repress�o, atravessa o seu pensamento. "Nunca ningu�m defendeu teses irracionalistas em estilo t�o calmamente l�gico", definiu Caetano Veloso.

    No livro "Gera��o em Transe - Mem�rias do Tempo do Tropicalismo" (1996), ele repassou a conviv�ncia com os tr�s artistas que julgava centrais na contracultura brasileira: Glauber, Jos� Celso Martinez Corr�a e Caetano, independentes entre si mas sincronizados em 1967, quando o filme "Terra em Transe", a montagem de "O Rei da Vela" e a can��o "Tropic�lia" traumatizaram as sensibilidades est�ticas.

    No ciclo contracultural, o ensa�sta conviveu e guardava afinidades com uma lista plural de agitadores: Rog�rio Duarte, Gilberto Gil, Torquato Neto, Pl�nio Marcos, Jorge Mautner, Jos� Agrippino de Paula, Leila Diniz, Othon Bastos, Antonio Bivar, Leon Hirszman, Helena Ignez, Jo�o Ubaldo Ribeiro, Waly Salom�o, Jorge Salom�o, Jards Macal� e a trupe dos Novos Baianos. Aprofundou, em tempos recentes, a amizade com o diretor Gerald Thomas.

    Em suas mem�rias, Maciel apresenta um aspecto biogr�fico pouco conhecido: seu trabalho no Laborat�rio de Interpreta��o Cr�tica do Teatro Oficina, um passo para os atores chegarem ao estilo interpretativo de "O Rei da Vela", a pe�a de Oswald de Andrade que lhe fora indicada pelo diretor e cr�tico italiano Ruggero Jacobbi e que ele recomendou ao diretor Z� Celso. Em 1968, Maciel se afastou dos palcos, na sequ�ncia do duplo veto da censura � sua dire��o de "Barrela", de Pl�nio Marcos, no Teatro Jovem, e "As rela��es naturais", de Qorpo-Santo, no Teatro Glauce Rocha.

    Dizia-se pol�mata ou homem sem especializa��o. Chegou a dirigir o longa "Society em Baby-Doll", em 1965. Nos anos 80, enraizou-se na atividade de roteirista na Rede Globo, integrando a equipe do "Globo Rep�rter" e, dentro do n�cleo de Daniel Filho, de especiais como "Jo�o Gilberto Prado Pereira de Oliveira" (1980), "Baby Gal" (1983) e "Chico & Caetano" (1986). Ainda trabalharia como roteirista na Rede Record, nos anos 2000. Condensou essa experi�ncia no livro "O Poder do Cl�max - Fundamentos do Roteiro de Cinema e TV", reeditado este ano pela Ed. Giostri. Aos 77 anos, viu-se pela primeira vez desempregado. No ano passado, foi convidado para ser consultor da s�rie "Os Dias Eram Assim", da Globo, escrita por Angela Chaves e Alessandra Poggi. "O Sol da Liberdade" (Ed. Vieira & Lent), sua �ltima colet�nea, revisitou a vanguarda do Tropicalismo, fil�sofos como Her�clito, Nietzsche e Heidegger, o escritor americano de fic��o cient�fica Philip K. Dick e o filme "Matrix" (1999).

    Limitado pelo enfisema pulmonar, que se agravou este ano, Maciel sentava-se em posi��o de l�tus, no gabinete, e passava os dias ouvindo Duke Ellington, o �dolo maior. Buscou em v�o o raro LP "The Duke In S�o Paulo", um concerto gravado em 1968 no Teatro Municipal, jamais encontrado em seus garimpos no exterior. Sofreu com a perda de um peda�o de sua cole��o de discos de jazz na �ltima mudan�a de apartamento, mas pacificou-se ao lembrar de uma li��o de Norman O. Brown: � preciso saber despedir-se para sempre. Nos �ltimos anos, publicava seus textos no Facebook e continuava a ler e discutir os mestres Heidegger, Sartre, Castaneda e Philip K. Dick.

    Elena Vettorazzo 08.10.1990/Folhapress
    Luiz Carlos Maciel, que dirige a pe�a "Boca Molhada de Paix�o Calada", de Leilah Assun��o, que estreia no Teatro Igreja.
    Luiz Carlos Maciel em retrato de 1990

    Descontente com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascens�o da direita ao poder —com ela, a caretice, sua velha inimiga—, Maciel lamentou, em casa, duas semanas antes da interna��o hospitalar: "Conseguiram transformar o Brasil no pa�s mais chato do mundo". Em seu �ltimo ensaio, "Mem�rias do Futuro" (in�dito), pensado como introdu��o a um livro imagin�rio, o ensa�sta defendeu um ponto de vista ut�pico: "A quest�o que nos confronta, hoje, � a necessidade de novas lembran�as do futuro, de informa��o sobre nosso destino atrav�s de um processo semelhante ao que operou nos anos 60".

    Filho de Loguned�, no Candombl�, Maciel aceitou os ensinamentos de Jesus e Buda, conheceu a Umbanda e o Santo Daime, absorveu o gnosticismo e preservou cautelas ate�stas.

    Ele deixa a vi�va, Maria Cl�udia, atriz, com quem estava casado desde 1976, os filhos L�cia Maria e Roberto (do primeiro casamento com Yonne), quatro netos, 13 livros e oito gatos batizados com nomes de fil�sofos pr�-socr�ticos. Arriscava-se � futurologia ao prever a manchete de sua morte: "Morre Luiz Carlos Maciel, o guru da contracultura".

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