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    41� Mostra de SP

    'Todos querem acertar', diz diretora Daniela Thomas, alvo de cr�ticas

    GUILHERME GENESTRETI
    DE S�O PAULO

    25/10/2017 02h00

    Ricardo Borges/Folhapress
    Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 24/10/2017; Retrato da diretora Daniela Thomas que estreia o filme "VAzantes". ( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)
    Daniela Thomas, diretora de "Vazante", no Instituto Moreira Salles do Rio

    Em exibi��o na Mostra de SP, "Vazante" � a primeira incurs�o de Daniela Thomas na dire��o solo de um longa, ap�s parcerias com Walter Salles e Felipe Hirsch.

    O filme retrata a escravid�o em Minas Gerais no s�culo 19 sob o olhar de uma garota branca (Luana Nastas), dada em casamento a um homem mais velho, senhor de escravos.

    O filme abriu a mostra Panorama no Festival de Berlim, em fevereiro, e gerou uma celeuma ao ser exibido no Festival de Bras�lia, em setembro.

    Na ocasi�o, a obra foi criticada por espectadores negros que viram no longa um discurso mantenedor do "status quo" da opress�o racial, particularmente pela forma como ele retrata a maioria dos escravos, sem nome ou sinais de subjetividade.

    Em entrevista por e-mail, a diretora comenta o filme e as pol�micas que ele suscitou.

    Folha - Em 'Vazante' voc� opta por um ritmo diferente do habitual. Por qu�?
    Daniela Thomas - Os primeiros dez minutos s�o determinantes para quem assiste. Na �poca em que se passa o filme, no in�cio do s�culo 19, ia-se do Rio de Janeiro ao interior de Minas Gerais a p�.

    Homens viajavam presos por correntes, por meses. � uma experi�ncia que nem conseguimos imaginar. Por isso, eu quis, de cara, expressar outra ideia de tempo. Foram v�rias estrat�gias para me aproximar da vida nesse lugar, nesse momento, mas o ritmo interno do filme foi uma das principais.

    Ao abordar a escravid�o, o cinema americano costuma retratar o que cr�ticos chamam de "fetiche da tortura". Voc� opta por outra via. Por qu�?
    Acredito que exista um g�nero sobre a escravid�o no cinema americano. E que, nesses filmes, haja uma explora��o das sev�cias aos escravos e de cenas de sadismo praticada por senhores contra os negros. A escravid�o parece ser uma quest�o de psicopatia individual. Eu queria sair dessa armadilha.

    A escravid�o, no meu entender, � um sadismo de Estado. A sociedade brasileira foi inteiramente constru�da sobre o trabalho escravo. E essa rela��o perversa baseada na exclus�o, na viol�ncia -que � fundadora do pa�s- foi o que eu quis retratar, n�o a doen�a individual.

    Minha vis�o e a do Beto, [Amaral, corroteirista], depois de uma pesquisa bastante extensa da produ��o historiogr�fica contempor�nea do Brasil, foi desenvolver a ideia -emprestada da fil�sofa Hannah Arendt- de que a principal caracter�stica de uma sociedade escravocrata � a "banalidade do mal".

    A viol�ncia perpassa todas as rela��es, e a tortura � apenas uma das maneiras como ela se expressa. E precis�vamos mostrar, no cinema, as din�micas sutis dessa viol�ncia cotidiana, insidiosa.

    Divulga��o
    Luana Nastas e Adriano Carvalho em cena de 'Vazante
    Luana Nastas e Adriano Carvalho em cena de 'Vazante'

    O filme parece retomar a ideia de que o pa�s se funda sobre o estupro. Foi a sua inten��o?
    � exatamente isso. Toda a dramaturgia foi fundada sobre a hip�tese de que a sociedade brasileira �, em grande parte, fruto do estupro. O da negra, escravizada, que � estuprada sistematicamente pelo senhor branco, e o da menina pr�-p�bere, que � dada pelos pais em casamento a homens de muitas vezes sua idade. Um absurdo que era a norma, incontest�vel. Os filhos desses estupros somos n�s, brasileiros.

    O filme foi criticado em Bras�lia por sua abordagem da escravid�o. Voc� disse que o considerava anacr�nico e que talvez nem o lan�asse. Depois, escreveu na "piau�' que havia dito aquilo ironicamente. Arrepende-se de ter capitulado?
    Foi um grande susto. E � l�gico que me arrependo, porque eu tenho um enorme orgulho do filme.

    O cinema tem um tempo pr�prio. Meu pai me contou h� muitos anos uma hist�ria da nossa fam�lia [sobre uma menina for�ada a se casar ainda crian�a] e isso iniciou um movimento que culminou em "Vazante". Foram quase 20 anos, da ideia at� a c�pia final. Brinco que cinema � um paquiderme, comparado �s novas m�dias.

    Um filme finalizado � um objeto incontorn�vel, um ponto de vista que tem o direito de existir, de ser visto, discutido.

    Todo mundo quer acertar. Eu desejei criar uma imagem veross�mil e pungente da vida no interior de Minas no in�cio do s�culo 19. Acho que consegui. Mas esse � o meu ponto de vista. E � o que eu posso oferecer ao di�logo geral, como artista. Para quem estiver interessado em dialogar, claro. E que venham outros filmes e livros refletindo sobre o nosso passado t�o terrivelmente injusto e de pontos de vista ainda in�ditos.

    No centro do debate est� a quest�o do lugar de fala, a ideia de que quem tem que falar sobre a opress�o � o oprimido. Como encara o tema?
    Estamos em plena tormenta, necess�ria e transformadora. Mas a ideia de um lugar de fala, que exclui todos que n�o s�o ao mesmo tempo sujeito e objeto, � um procedimento que divide, que impede o di�logo, a elabora��o.

    Precisamos da multiplicidade de vozes, de lugares, de troca de experi�ncias. N�o temos escolha. Se n�o formos juntos, vamos todos nos afogar na sopa da direita fundamentalista, que, enquanto a gente se esmurra, cresce exponencialmente. E o fascismo, esse sim, vai nos jogar de volta para dentro da din�mica colonialista, patriarcal, que tanto desejamos superar.

    � comum apontarem que 'Vazante' d� contornos est�ticos � trag�dia da escravid�o. Como reage a essa cr�tica?
    A linguagem visual e sonora de "Vazante" reflete meu desejo de ter um rigor absoluto na recria��o dessa �poca. E a filmagem seca, sem gruas, sem "travellings" [movimento em que a c�mera se desloca pelo espa�o da filmagem], sem m�sica �pica, emotiva, sem qualquer enfeite para acentuar a experi�ncia de ver o filme, vai na contram�o da "estetiza��o".

    Acredito na for�a da presen�a das pessoas que se engajaram no projeto. A busca dessas pessoas, entre descendentes dos escravizados da regi�o ou refugiados africanos no Brasil, dessas paisagens, da veracidade de cada objeto recriado para o filme, a aus�ncia de luz el�trica na fotografia e de trilha sonora no filme final foram um esfor�o concentrado para atingir n�o um ideal est�tico, mas um desejo de veracidade.

    VAZANTE
    DIRE��O Daniela Thomas
    ELENCO Adriano Carvalho, Luana Nastas, Vinicius Dos Anjos, Jai Baptista
    PRODU��O Brasil, Portugal, 2017, 14 anos
    MOSTRA qua. (25), �s 21h30; sex. (27), �s 17h30; dom. (29), �s 15h15; todas as sess�es ocorrem no Espa�o Ita� Frei Caneca

    Edi��o impressa

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