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    Um passeio pelo sub�rbio de Lima Barreto, que ganha nova biografia

    MAUR�CIO MEIRELES
    ENVIADO ESPECIAL AO RIO

    24/06/2017 02h55

    O vento frio vem da Serra dos �rg�os, bagun�a os cabelos, apaga a chama dos isqueiros, levanta a poeira das esquinas. No s�culo passado, acreditava-se que essa mesma brisa podia curar os tuberculosos.

    "Estamos aqui na Su��a brasileira! Espera a� que eu vou pegar meu xale!", ri a historiadora e antrop�loga Lilia Moritz Schwarcz.

    A piada dela faz sentido. Estamos em Todos os Santos, no sub�rbio do Rio de Janeiro, onde Lima Barreto (1881-1922) viveu. O escritor, homenageado da Flip (Festa Liter�ria Internacional de Paraty) deste ano, � tema de uma biografia escrita pela autora, que chega �s livrarias.

    � o primeiro retrato de f�lego do autor desde a pesquisa de Francisco de Assis Barbosa, nos anos 1950, que volta �s prateleiras, pela Aut�ntica.

    Mesmo que, em dezembro, o sub�rbio seja associado a um terr�vel calor, chal�s em estilo su��o multiplicam-se pelas ruas –aqui era lugar de tempo frio e ar puro. "Lima dizia que o verdadeiro suburbano � o da linha do trem", diz Schwarcz, que usa no livro o conceito de "literatura em tr�nsito" como uma das defini��es da obra do autor.

    A linha f�rrea que corta o bairro, fundada em 1855, une e separa a prov�ncia carioca –por ela, as massas de funcion�rios p�blicos que serviam � monarquia e, depois, � Rep�blica iam trabalhar no centro da cidade. Lima, um deles, pegava um trem de segunda classe para ir a seu emprego de amanuense.

    lima barreto

    Voltava para c� observando os tipos: trabalhadores, mo�as soltando suspiros para ver se um cavalheiro cedia o lugar. Observava a paisagem pela janela e achava que no sub�rbio nada combinava, mas sentia afeto pelo lugar.

    "Lima Barreto � sempre um deslocado. Est� no sub�rbio, mas se sente diferente dos suburbanos. No centro, por�m, se sente mais suburbano", afirma a historiadora.

    A diferen�a da nova biografia em rela��o � anterior � tratar amplamente da quest�o racial. Lima era negro, descendente de escravos. E dedicou-se a retratar os tipos marginais da sociedade, al�m de denunciar com sua l�ngua ferina os v�cios da Primeira Rep�blica e da vida liter�ria.

    Assim, o Lima Barreto que surge � o dos direitos civis –o escritor brilhante, mas que n�o conseguiu ascender por causa de sua cor.

    Fizemos um recorte na sua biografia para conhecer um Lima espec�fico: o cronista dos sub�rbios cariocas. Partimos em uma expedi��o com a historiadora pela regi�o, para ver as ruas que tomam caminhos inesperados, as cal�adas esburacadas, os ladrilhos do casario e as pessoas descritas por Lima.

    O caminho do autor para casa era longo, n�o s� por causa das ladeiras, mas pelos bares, tomando parati, a cacha�a da �poca. O primeiro que encontramos � o Bar da Loura.

    BAR DA LOURA

    "Iaraaaaaaaaaaaaaaaa!"

    Um homem chama e l� vem a Loura desfilando sua paleta vibrante de cores -cabelo amarelo, avental, brincos e sand�lia rosas. A Loura � m�stica e mostra aos visitantes do bar seu altar cheio de ciganos, entidades da umbanda.

    "Aqui � a parte esot�rica. [Em cima], fica Nossa Senhora porque acima de Deus ningu�m. Abaixo, est�o todas as energias", afirma.

    Como Lima Barreto, ela se indigna com os v�cios da rep�blica. Est� muito irritada que uma escola em frente ao bar foi fechada sem protestos. Fosse mais jovem e passasse por isso, a Loura seria radical:

    "Eu subia l� em cima [do est�dio de futebol do Engenh�o] e dizia que ia me matar! Chamava a Globo, chamava todo mundo!"

    Ainda bem que ela n�o fez isso, talvez nem adiantasse. Lima descreveu os cortejos do sub�rbio: com as ruas ca�ticas e com buracos, o defunto vinha sacolejando tanto que s� faltava ressuscitar.

    TENDA AFRICANA

    � poss�vel conversar com os mortos em Todos os Santos. A religiosidade sincr�tica dos habitantes do lugar foi descrita por Lima -e permanece tal e qual.

    Se � para afastar os atrasos da vida, escreve ele, apela-se � "feiti�aria"; para curar doen�a que n�o passa, ao espiritismo. S� n�o diga para ningu�m no bairro deixar de batizar as crian�as -aqui o filho de ningu�m vai morrer pag�o.

    Para ver, basta andar pelas mesmas ruas que Clara dos Anjos, protagonista do romance que leva seu nome, e passar na Tenda Africana.

    Se o visitante chegar em uma manh� de ver�o, vai ver a luz do sol entrar pela porta do terreiro de umbanda at� iluminar S�o Sebasti�o no altar.

    Com 78 anos, a casa foi fundada pelos caboclos Ventania e Rompe-Mato -entidades que, no corpo dos m�diuns, falam pouco e se comportam de forma circunspecta.

    Para saudar seu Ventania, canta-se assim: "Na raiz da aruc�ia/ Sua cobra � um segredo/ Ele mora no lajedo/ Sentado na beira-mar".

    A CASA DO LOUCO

    J� n�o se ouvem uivos na rua Elisa de Albuquerque como antigamente. Haja ladeira para chegar a ela. Aqui, Lima viveu com a fam�lia depois que o pai passou a sofrer de um transtorno psiqui�trico. Como a numera��o da antiga rua Boa Vista mudou, n�o se sabe mais onde ficava a "casa do louco", onde Jo�o Henriques, seu pai, uivava. O que ter� acontecido?

    Ainda bem que todas as portas -todas mesmo- se abrem aos visitantes em Todos os Santos. � assim que encontramos uma pista.

    "Lima Barreto? Esse era bom de copo!", diz Oswaldo Clapp, 85, depois de mandar os estranhos entrarem em seu casar�o na mesma rua. "� tanta hist�ria que ou�o dele que s� consigo pensar: esse Lima Barreto estava era de porre."

    A surpresa? S�o duas. Os Clapp vivem na casa h� 140 anos e Oswaldo diz que seu pai foi amigo do escritor. A casa dos Lima Barreto, no topo da ladeira, foi destru�da por cupins h� muito tempo.

    Ficar�amos c�ticos n�o fosse o sobrenome do anfitri�o: ele � bisneto de Jo�o Clapp, um famoso abolicionista, amigo de Joaquim Nabuco e Jos� do Patroc�nio. Era uma fam�lia de traficantes negreiros que libertaram seus escravos e aderiram � causa.

    No fim do s�culo 19, diz Oswaldo, os Clapp tinham um s�tio na G�vea, pr�ximo ao lend�rio quilombo do Leblon, onde se plantavam as cam�lias que viraram s�mbolo do abolicionismo. Dizia-se, � �poca, que a flor era "fr�gil como a liberdade".

    "Ele [Jo�o Clapp] � um dos que est�o pr�ximos da princesa Isabel na foto da Aboli��o. � uma fam�lia muito importante, d� para entender porque os Lima Barreto podiam ser amigos deles", diz a historiadora Lilia Schwarcz.

    Perto dali, na rua Major Mascarenhas, onde o escritor viveu em duas casas, n�o damos a mesma sorte: se a numera��o estiver correta, a casa de Lima virou um condom�nio envidra�ado.

    Divulga��o
    Literatura: o escritor Lima Barreto (1881-1922), autor do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma", fotografado no Hospital Psiqui�trico Pedro II, onde hoje funciona o Intituto de Psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no ano de 1919. (Divulga��o). *** DIREITOS RESERVADOS. N�O PUBLICAR SEM AUTORIZA��O DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM ***
    Escritor no Hospital Psiqui�trico Pedro 2�, no Rio, em 1919

    NA MINHA ILHA

    Todos os Santos tamb�m foi um lugar dif�cil para Lima Barreto. Com o pai aposentado, o escritor trabalhava para sustentar a fam�lia. Foi ali que guardou sua famosa cole��o de livros, hoje armazenada na Biblioteca Nacional, e escreveu a maior parte de suas obras. Mas tamb�m onde afundou no alcoolismo.

    Antes disso, por�m, Lima foi feliz bem longe dali, na Ilha do Governador. Depois de perder o emprego com a proclama��o da Rep�blica -a fam�lia era protegida de um nobre da monarquia-, o pai do autor foi designado para dirigir uma "col�nia de alienados" no local.

    Era um lugar para onde se mandavam os loucos -embora o conceito de loucura, � �poca, fosse mais el�stico do que nos dias de hoje.

    � l� que fica o s�tio de Policarpo Quaresma, personagem do livro que leva seu nome. "Se der zebra aqui, a gente vai voar com asinhas", diz um militar que nos guia pelo local.

    L�, funciona o Parque de Material B�lico da Aeron�utica, onde ficam guardados m�sseis, minas, bombas (Lima, que era contra o servi�o militar, daria uma risadinha de esc�rnio). A casa da fam�lia hoje � um alojamento.

    Foi ali que o amanuense conheceu uma das figuras mais importantes de sua vida -e para sua forma��o como escritor preocupado com a condi��o dos negros.

    Manuel Cabinda era um escravo que comprou a pr�pria liberdade. Apaixonado por uma escrava, trabalhou duro para pagar tamb�m a alforria dela -quando conseguiu, viu a mo�a ir embora com outro.

    "O fato abalou o pobre preto em todo o seu ser. Ficou meio pateta", escreveu Lima.

    Manuel foi parar na col�nia e era ele que contava ao menino hist�rias da Costa da �frica, de onde viera. Quando os Lima Barreto passaram sufoco,o ex-escravo ainda emprestou cem mil r�is ao amigo.

    O cora��o de Lima tamb�m partiu-se naquela ilha. Durante a Revolta da Armada (1893), que ocupou a regi�o, ele viu seu pai levar o Estrela, boi da col�nia, para os rebeldes. Depois, escreveu: "Quando vi que o iam matar [...], corri para casa, sem olhar para tr�s."

    DOIS MUNDOS

    Lima Barreto - Triste Vision�rio
    Lilia M. Schwarcz
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    Se a linha de trem, que Lima tanto retratou, dividia o escritor em dois -o dos sub�rbios e o cr�tico da sociedade do centro, a ironia vem no final da vida. Quando morreu, lendo a "Revista dos Dois Mundos", no come�o poucos apareceram para seu cortejo.

    Depois, surgiu uma pequena multid�o an�nima. Crian�as, carregadores, comerciantes -e os b�bados que choravam. O caix�o de Lima pegou o trem e foi enterrado em Botafogo, num cemit�rio de elite, longe dos seus sub�rbios.

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