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    Cr�tica: Novo livro de Ad�lia Prado d� for�a inesperada ao antiquado

    ALCIR P�CORA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    25/01/2014 03h19

    "Miserere", novo livro de Ad�lia Prado, 78, � �timo exemplo de como simbologias tradicionais, carregadas de mitos e de interditos supostamente ultrapassados, podem ganhar uma inesperada for�a como repert�rio po�tico.

    A primeira explica��o, em negativo, n�o � dif�cil de encontrar: aceito o pressuposto desse mundo vetusto, perde-se o medo de confessar idade, exaust�o, pobreza e sujeira, pois a car�ncia se reinterpreta como promessa de eternidade.

    Abre-se uma fresta no paradigma existencial contempor�neo, restrito � banalidade laica, presentista, pragm�tica.

    O que poderia ser visto como dogm�tico e conservador acaba funcionando como al�vio para o efeito rebote da obrigatoriedade de se manter jovem, saud�vel, feliz, "up to date".

    O que haja de antiquado nas figura��es da cren�a, de repente, anima vasta ressignifica��o sens�ria da vida diante dos programas profil�ticos e ass�pticos da cosm�tica e da medicina, muito mais pr�ximas agora do que admitiria Plat�o.

    Em versos brancos livres, de l�xico corrente e cortes gramaticais, Ad�lia pode falar, por exemplo, "num mundo bom onde se come errado,/ del�cia de marmitas de carboidrato e torresmos" (em "Qualquer Coisa que Brilhe"); ou: "Minha m�o tem manchas,/ pintas marrons como ovinhos de codorna" (em "Av�s"); "Deus, tem piedade de mim./ Pe�o porque estou viva/ e sou louca por a��car" ("Distra��es no Vel�rio").

    N�O TEMER A MORTE

    O tom sentencioso e edificante � geralmente temperado por uma atitude bem-humorada e vigorosa diante do p�nico da doen�a e da morte, esta que foi higienicamente desaparecida da vista dos amigos e parentes para se tornar um caso t�cnico hospitalar, como evidenciou o historiador franc�s Philippe Ari�s.

    Ad�lia, ao contr�rio, pode dizer: "Tem bra�os acolhedores/ e vem cheia de vida./ � Deus a poderosa morte" ("O Hospedeiro").

    E quando prop�e "dormir na pr�pria cruz sem sobressaltos, como um beb� brincando com suas fezes" ("A Criatura") canta um mundo �s avessas daquele do "grande Bazar" surdo, no qual todos "falam a mesma l�ngua e t�m o mesmo pre�o/ do 'Concurso de miss para criancinhas'" ("Sacramental").

    H� uma segunda explica��o, desta vez imanente, para as qualidades de "Miserere". Nalguns pontos altos do livro, o erotismo, o amor do corpo, se d� em associa��o direta com a evoca��o da vigil�ncia repressora do pai e da unidade uterina com a m�e.

    Assim: "o Senhor da vida olhava-me/ como olham os reis/ as servas com quem se deitam" ("Pomar"); "vi o dedo,/ o meu, este que, dentro de minha m�e,/ a expensas dela formou-se" ("Contramor").

    O BELO E O SUJO
    Resulta da� uma gera��o e parturi��o no que repugna, n�o no que � belo: "O verdadeiro � sujo, destinadamente sujo" ("Branca de Neve"); "Pois o encontro agora escuro e fosco/ no dia radioso � �nico e n�o cintila(...) Abba! Abba! Aceita o que me enoja,/ gosma que me ocultou o Teu rosto" ("Qualquer Coisa que Brilhe").

    Em termos cat�licos, que s�o os pertinentes aqui, apenas neste ponto opaco e cego do abandono se aceita Deus, sendo aceito por ele.

    Entretanto, como reconhece Ad�lia, falta-lhe coragem para dizer tudo o que, segundo ela mesma, se dito, "em mim mesma produziria vergonha, v�rios me odiariam" ("Branca de Neve").

    Uma l�ngua menos gentil talvez fizesse mal a Ad�lia, mas faria muito bem a sua poesia.

    ALCIR P�CORA � professor de teoria liter�ria da Unicamp e autor de "M�quina de G�neros" (Edusp).

    MISERERE
    AUTORA Ad�lia Prado
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 25 (96 p�gs.)
    AVALIA��O bom

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