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    Michel Laub

    Selvagens e eternos

    19/06/2015 02h00

    Assisto a "Os Bons Companheiros" desde o seu lan�amento, em 1990. A "Cassino", desde o seu, em 1995. � dos poucos h�bitos que mantive nestas duas d�cadas e meia em que deixei para tr�s tantas certezas sobre tantas coisas.

    No ano em que se comemoram anivers�rios redondos dos dois cl�ssicos de Martin Scorsese, as li��es de ambos se renovam a cada reprise. A principal, que soa �bvia, mas n�o costuma ser seguida, � a de que a liberdade � o bem mais precioso do artista –e se apegar a ela � a melhor forma de lidar com as regras de um g�nero ou tradi��o.

    Em vez de ser uma sombra intimidadora, o longo c�none americano de filmes de m�fia, cujos realizadores v�o de Howard Hawks e William Wellman a Brian De Palma e Francis Ford Coppola, funcionou de maneira paradoxal aqui. J� que as possibilidades de exibir esse universo pareciam esgotadas, Scorsese resolveu trabalhar sem amarras –fazendo homenagens e emulando o virtuosismo dos mestres, sim, mas dando �s suas crias um tom de irrever�ncia selvagem.

    O diretor n�o teve medo, por exemplo, de encarar um tabu misterioso do meio cinematogr�fico: o de que o "off" seria um recurso barato, a muleta para quem � incapaz contar uma hist�ria por meio de imagens e di�logos diretos.

    Tamb�m resolveu ir contra expectativas e escalar um ator conhecido (Joe Pesci) para um papel id�ntico ao que havia desempenhado cinco anos antes. E repetir situa��es de enredo (escritas por Nicholas Pileggi). E a aposta na montagem fren�tica (de Thelma Schoonmaker). E itens da trilha sonora (Cream, Rolling Stones), al�m do desfecho.

    Nessa est�tica de reitera��o e excesso, que p�e Scorsese em algum ponto entre o expressionismo e a a��o pura, o deleite pelo pecado e o fasc�nio tamb�m religioso pela queda, cada fotograma est� a servi�o do sabor. Tudo � maravilhosamente mostrado e explicado, como num best-seller –outro modelo narrativo tabu– que d� ao leitor/espectador o privil�gio de espiar a sala onde se conta dinheiro num hotel, a forma como um g�ngster corta alho para cozinhar na pris�o.

    Por um lado, se os crit�rios obedecerem a um rigor hist�rico e art�stico, o resultado � menos relevante que o de uma s�rie como "O Poderoso Chef�o" –este �pico do crime que dialoga com meio s�culo de capitalismo americano. Por outro, a escolha de subordinar o grande panorama aos horizontes estreitos de um bando de desmiolados era o que me impedia de mudar de canal na �poca em que a TV exibia obsessivamente "Os Bons Companheiros" e "Cassino".

    A natureza mais fragment�ria de ambos, feita de pequenos epis�dios aut�nomos que v�o se resolvendo, talvez explique o efeito hipnotizante que, ao menos para mim, naquela meia hora decisiva antes de dormir (per�odo em que atua a cr�tica cinematogr�fica mais severa e criteriosa), os faz superar a saga dos Corleone.

    Entre sangue e coca�na, boates e frigor�ficos, perucas que se soltam na piscina e cozinheiros que n�o conseguem botar a mesma quantidade de recheio em cada "muffin", a plateia � conduzida por uma divers�o mundana e generosa, que n�o exige o esfor�o intelectual nem a mobiliza��o de sentimentos das grandes tramas pol�ticas ou dilemas existenciais.

    Como nos melhores Scorseses ("Taxi Driver", "Touro Indom�vel"), entre um arco narrativo fechado e as arestas �s vezes dissonantes das biografias que acompanhamos, se estas inclu�rem alguma frase ou particularidade que se tornar� inesquec�vel, a segunda op��o vence em registro glorioso.

    Por estranho que pare�a, em filmes c�lebres por momentos de brutalidade repulsiva, uma boa palavra para definir o resultado da estrat�gia � leveza. "Os Bons Companheiros" e "Cassino" distribuem o tempo e a densidade de forma que passemos por tais sequ�ncias, incluindo um personagem morto a pauladas e outro com o cr�nio esmagado numa prensa, at� que inc�lumes. S�o pequenos ru�dos, digamos, em meio �s doses de aventura, sexo, humor, espanto e exuber�ncia que nos s�o oferecidas.

    Leveza n�o significa leviandade, por certo. Qualquer adulto moralmente alfabetizado enxerga a corrup��o de valores que desfila na tela. Se torcemos por Henry, Tommy, Ace, Ginger e seus pares, � menos por identifica��o do que por ego�smo: queremos que todos continuem ali, como se fosse poss�vel estender para sempre as perip�cias de dois filmes igualmente eternos.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    � escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Di�rio da queda" (2011) e "A ma�� envenenada" (2013).

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