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    Bernardo Carvalho

    'Zama' � o mais pr�ximo que h� de um romance hist�rico escrito por Beckett

    29/10/2017 02h00

    Divulga��o
    Cena do filme 'Zama', de Lucrecia Martel, em exibi��o na Mostra

    O argentino Antonio Di Benedetto dedicou seu romance "Zama", cuja adapta��o para o cinema por Lucrecia Martel est� em exibi��o na Mostra, "�s v�timas da espera".

    O romance foi publicado em 1956, Di Benedetto morreu 30 anos depois, mas a dedicat�ria continua valendo. Em especial para n�s que, desde o impeachment de Dilma Rousseff, vivemos uma vers�o trash do dia da marmota eternizado em "Feiti�o do Tempo", com Bill Murray, um pesadelo no qual o pior nunca chega, porque de tanto se repetir s� pode piorar.

    Di Benedetto foi preso horas depois do golpe que instaurou o regime militar na Argentina, em 24 de mar�o de 1976. Ficou mais de um ano na cadeia, sem saber o motivo. Para os que n�o sabem ou t�m mem�ria curta, � para isso que servem as ditaduras militares.

    O escritor e jornalista foi torturado f�sica e psicologicamente, levado por quatro vezes a falsos pelot�es de fuzilamento, at� ser libertado, em setembro de 1977, gra�as � interven��o do pr�mio Nobel alem�o Heinrich B�ll e de Ernesto S�bato.

    N�o pensou duas vezes e partiu para o ex�lio na Espanha, de onde s� voltou com a debacle dos militares e a restaura��o da democracia, dois anos antes de morrer, v�tima de um derrame.

    Nascido na col�nia, ao contr�rio da maioria dos funcion�rios de confian�a da coroa espanhola, dom Diego de Zama, o protagonista do romance, tamb�m s� pensa em ir embora, mas n�o sai do lugar.

    Na �ltima d�cada do s�culo 18, ele depende da boa vontade do governador e do rei para transferi-lo do buraco onde se encontra, no atual Paraguai, para um posto onde espera poder se reunir com a mulher e os filhos.

    Enquanto isso, arrasta-se pela prov�ncia modorrenta, �s voltas com a brutalidade colonial, os �ndios, a mis�ria, a fome, o calor, a doen�a, o desejo, as amantes e a inconveni�ncia de insetos, aranhas e cobras.

    "Zama" � o que poderia haver de mais pr�ximo de um romance hist�rico escrito por Samuel Beckett. Embora contempor�neos, nada indica que os dois escritores conhecessem suas respectivas obras sobre a espera, publicadas com diferen�a de poucos anos.

    "Zama" remete a "O Deserto dos T�rtaros", de Dino Buzzati, aos existencialistas e a Kafka. O nome do anti-her�i, embora baseado num personagem hist�rico real, n�o deixa de ecoar uma alus�o sonora ao protagonista de "A Metamorfose", Samsa.

    O romance � dividido em tr�s partes. N�o seria improv�vel que, hoje, um editor o recusasse sem pestanejar, contrapondo-lhe crit�rios de efici�ncia narrativa, � maneira dos roteiros de seriados de televis�o.

    Praticamente nada acontece ao longo dos dois primeiros ter�os. Mas � justamente por ser antecedida pelo nada que a reviravolta dram�tica da �ltima parte contribui para fazer desse livro uma das obras-primas do s�culo 20.

    "Zama" exp�e com precis�o obsessiva a anatomia da espera, esse tempo que nem mesmo uma dramaturgia hist�rica e hipertrofiada, recheada de di�logos inteligentes, � capaz de abolir.

    Mesmo correndo o risco de revelar mais do que seria desejado, � dif�cil resistir � tenta��o de citar uma passagem j� no �ltimo ter�o do romance, quando a defini��o da espera ganha contornos borgeanos: "galopava atr�s do seu perseguidor".

    H� um sentido complementar, tamb�m circular, mas desta vez pleon�stico, que distingue a espera em "Esperando os B�rbaros", de Kav�fis.

    No poema, ao mesmo tempo em que adia toda a��o, a espera � o que d� sentido � in�rcia do adiamento. Enquanto os b�rbaros n�o chegam, melhor n�o fazer nada. "Por que as ruas se esvaziaram?/Porque a noite caiu e os b�rbaros n�o chegaram." Tem um pouco a ver com a nossa espera.

    Um amigo que respeito especialmente me garantiu outro dia que Temer n�o passa de um palha�o tentando se manter em cena a qualquer pre�o e que todos os seus abusos e ataques ao bom senso, � intelig�ncia e aos direitos dos cidad�os s�o insustent�veis, ser�o revertidos mais cedo ou mais tarde, como ali�s t�m sido, um ap�s o outro.

    Mesmo achando dif�cil de acreditar, senti um al�vio na espera, como se ela n�o fosse apenas o caminho irrevers�vel para o pior.

    Perto do fim do livro, um grupo de bandidos insiste para que o protagonista lhes d� a pista de um tesouro que n�o existe. A informa��o em troca de sua vida. O l�der do bando d� a entender que Zama pode dizer o que quiser, n�o importa a verdade, importa a esperan�a.

    E a�, mesmo entendendo que � suic�dio, o ref�m decide afinal agir, ou melhor, escolhe servir-se da ina��o da espera para aboli-la: "Fiz por eles o que ningu�m quis fazer por mim: dizer n�o a suas esperan�as".

    Eu n�o tive coragem de dizer o mesmo ao meu amigo.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodu��o", j� foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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