Edgar Martins: verdade ou consequência

Um jornal deve convidar um artista para fazer o trabalho de um fotojornalista? Um fotógrafo deve assumir que faz manipulação digital? Curadores e investigadores de fotografia e um professor de jornalismo falam sobre a controvérsia entre o fotógrafo Edgar Martins e o "New York Times"

A página de Internet do "New York Times" que em tempos teve fotografias de Edgar Martins parece-se com uma cena de crime depois de limpa. Onde antes estava um "slideshow" com uma série de imagens existe agora uma nota editorial, datada de 8 de Julho, explicando que a descoberta de indícios de manipulação digital levou o jornal a remover as fotografias. "Se os editores soubessem de antemão que as fotografias tinham sido manipuladas digitalmente, não teriam publicado o ensaio fotográfico", lê-se.

Recapitulando: a revista de domingo do "New York Times" encomendara ao fotógrafo português radicado em Londres fotografias sobre projectos de construção em diferentes estados americanos que foram interrompidos pelo colapso do mercado imobiliário. Intitulado "Ruins of the Second Gilded Age" (Ruínas da Segunda Idade de Ouro), o portfolio foi publicado na revista de 5 de Julho e uma versão mais alargada foi disponibilizada em "slideshow" no "site" do jornal. Foi este último que deu origem a um amplo debate entre os visitantes do fórum de discussão Metafilter: um deles, programador informático, veio mostrar que uma das imagens - a estrutura de madeira no interior de uma casa - tinha sido manipulada porque metade da fotografia era o espelho da outra metade. Foi o rastilho para questionar a credibilidade do trabalho de Edgar Martins: percebeu-se que outras fotografias também tinham sido rearranjadas digitalmente, nomeadamente através da duplicação de elementos dentro da imagem. O embaraço era tanto maior uma vez que o "New York Times" fizera questão de apresentar o trabalho de Edgar Martins, na revista e na versão "online", referindo que ele "cria as suas imagens com longas exposições mas sem manipulação digital". Desde que deixou a nota editorial no "site" - o equivalente ao contorno branco de uma silhueta no local do crime - o "New York Times" recolheu-se no silêncio como uma vítima pós-trauma, enquanto a blogosfera e a imprensa amplificaram o caso.

É desonesto?

Episódios idênticos já custaram o emprego a fotógrafos americanos: em 2007, Allan Detrich demitiu-se do diário "Toledo Blade", onde trabalhava há 18 anos, depois de se descobrir que tinha apagado as pernas de uma pessoa de uma das suas fotografias. Fê-lo por razões estéticas, e o seu gesto não alterou substancialmente a leitura da fotografia - tratava-se de um elemento a mais, por assim dizer: as pernas de um observador da cena que estava a ser fotografada - mas Detrich, fotógrafo multi-premiado e finalista do Pulitzer, nunca mais trabalhou no "Toledo Blade". "Leitores têm-nos perguntado porque é que isto tem tanta importância. O que há de errado em alterar o conteúdo de uma fotografia que é publicada num jornal?", escreveu um dos directores do jornal, pronunciando-se sobre o caso. "A resposta é simples: é desonesto. O jornalismo, quer use palavras ou imagens, deve ser uma representação rigorosa da verdade." Uma investigação interna demonstrou que Detrich tinha alterado digitalmente dezenas de fotografias publicadas pelo jornal. O que é feito de Detrich? Fotografa casamentos e tempestades, como se vê no seu "site" oficial.

Há mais casos de onde este veio, mas Detrich era fotojornalista, ao passo que Edgar Martins tem trabalhado fundamentalmente no campo artístico. Tem feito uma carreira internacional e o reconhecimento crítico tem sido meteórico - aos 32 anos, é apontado como um dos mais promissores fotógrafos da sua geração. A selecta Aperture editou o seu livro "Topologies" e as bolsas e prémios têm-se sucedido - no ano passado, foi o vencedor do BES Photo (25 mil euros), actualmente é um dos 12 finalistas do Prix Pictet, juntamente com o alemão Andreas Gursky e o britânico Chris Steele-Perkins. Mesmo quando o seu trabalho se tem cruzado com temas próximos do fotojornalismo ou do registo documental - os incêndios nas florestas portuguesas, um levantamento visual dos aeroportos em Portugal - as intenções têm sido outras e os canais de divulgação têm sido, por excelência, as galerias e museus.

Um fotojornalista tem uma obrigação profissional para com a "verdade", um artista "faz o que lhe apetecer", diz Margarida Medeiros, investigadora e professora de fotografia. "Claro que é legítimo ele usar o que quiser. Pode até usar só um quarto da fotografia." Só que já não estamos na galeria - o contexto de apresentação do trabalho foi um jornal. "É sempre um erro estarmos a fazer afirmações sobre a fotografia se não mencionarmos de que contexto de uso estamos a falar. A questão factual é completamente relevante para a imprensa mas completamente irrelevante na arte", lembra Sérgio Mah, curador de fotografia e comissário da PhotoEspaña.

Jorge Pedro Sousa, professor de jornalismo na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, e autor de vários livros sobre fotojornalismo, concorda com a reacção do "New York Times". "A manipulação fotográfica não deve ter lugar excepto quando é para haver um ganho informativo e desde que os leitores sejam informados disso. Vamos imaginar uma imagem de um bombardeamento: se calhar não conseguimos ter na mesma fotografia os aviões e os efeitos das bombas. Por isso, poderíamos eventualmente combinar numa única imagem digitalmente manipulada as duas coisas. Desde que o leitor seja informado devidamente de que se trata de uma imagem alterada, há aí algum ganho de informação. mas noutras ocasiões não. E sobretudo não acho que a alteração digital das fotografias da forma como foi feita no caso do ‘New York Times' possa ser feita de forma insidiosa, sem o leitor saber que estaria a ser confrontado com imagens digitalmente alteradas."

O Livro de Estilo do "New York Times" estabelece que as imagens publicadas na edição em papel ou "online" "devem ser genuínas em todos os aspectos", o que implica que "nem pessoas nem objectos podem ser acrescentados, rearrumados, invertidos, distorcidos ou removidos de uma cena". O jornal admite reenquadramento da imagem e ajustamentos cromáticos "limitados". Respondendo a perguntas dos leitores no dia 18 de Junho, a supervisora máxima da fotografia no "New York Times", Michele McNally, explicava que o jornal "espera que todos os seus fotógrafos - efectivos ou contratados - adiram a estas linhas de orientação". E descreveu "as muitas etapas de escrutínio por que uma imagem passa" antes de ser publicada. No "New York Times", cada secção tem o seu próprio editor de fotografia - é ele quem primeiro vê as imagens, seguido do editor de fotografia da primeira página. Se houver algum elemento duvidoso, é pedido ao fotógrafo ou agência que envie os originais, que o editor tratará de abrir no programa Photoshop, ampliando "áreas questionáveis". Posteriormente, na fase de produção gráfica, podem surgir "discrepâncias" e os editores serão avisados. "Já houve ocasiões em que requisitei os ficheiros originais por julgar que a imagem estava demasiado trabalhada, apenas para descobrir que estava errada", concluía McNally. (Tanto McNally como a editora de fotografia da revista do "New York Times", Kathy Ryan, foram contactadas por e-mail pelo Ípsilon, mas não responderam.)

Há quem pense que se o "New York Times" não tivesse referido inicialmente que as imagens de Edgar Martins não tinham sido alvo de manipulação digital, não haveria razões para escândalo. Para Sérgio Mah, Edgar Martins devia ter "clarificado" com o jornal que se tratava de "um ‘statement' artístico". "E o jornal devia ter sido mais aberto e ter acentuado: ‘Isto é o trabalho de um artista'. O marketing que o ‘New York Times' fez foi absolutamente superficial. Devia ter valorizado outras coisas do trabalho quando valorizou pormenores de resistência do jornalismo. Aquilo que aparece hoje em jornais e revistas não é absolutamente literal."

Emília Tavares, historiadora e curadora de fotografia, considera que se o objectivo do jornal era produzir um trabalho documental, então Edgar Martins "era certamente o fotógrafo menos apropriado para isso", um "erro de ‘casting'". Descreve-o como "um fotógrafo completamente onírico", cujas imagens "remetem sempre para um universo que não é o da realidade". Mas essa ambiguidade visual presente nas fotografias de Edgar Martins - o facto de parecerem quase sempre encenadas ou idealizadas - fez certamente parte das intenções do "New York Times" quando escolheu Edgar Martins e não outro fotógrafo mais próximo da tradição documental ou um fotojornalista. "Nesse sentido, o tiro saiu-lhes pela culatra", diz Emília Tavares.

Não-manipulação: valor reafirmado

Em entrevista ao PÚBLICO no dia 10 de Julho, falando pela primeira vez do caso, Edgar Martins admitia ter recorrido a um técnico de Photoshop para introduzir alterações em imagens do trabalho, adiantando que o "New York Times" nunca lhe pedira uma abordagem factual. O fotógrafo referiu-se a "um desencontro" sobre o modo como cada uma das partes assumiu o ponto de partida para o trabalho.

Ao referir que as fotografias de Edgar Martins não tinham qualquer manipulação digital, o "New York Times" estava apenas a repetir um argumento que tem sido utilizado de forma recorrente para descrever o trabalho do fotógrafo. Aliás, aquele jornal não foi o único a retractar-se nas últimas semanas - também a editora Aperture, que publicou "Topologies", descrevia o trabalho de Martins no seu "site" como o produto de "uma composição virtuosa e de um enquadramento meticuloso - mas sem manipulação digital". Depois de a polémica no "New York Times" ter surgido, a Aperture retirou a frase "mas sem manipulação digital". Em entrevista à revista "Time Out Lisboa", o fotógrafo afirma: "Não tenho qualquer controlo sobre essas sinopses que são escritas por outras pessoas e que depois são divulgadas." Basta consultar os artigos de imprensa que têm saído sobre o seu trabalho e que Edgar Martins disponibilizou no seu "site" para verificar como a não-manipulação tem sido um valor reafirmado pelo autor em entrevistas. "Quando fotografo, não faço qualquer pós-produção sobre as imagens, seja na câmara escura seja digitalmente" ("Artmostfierce", Abril de 2008). "Apesar de não fazer nenhumas intervenções físicas alem de enquadrar [a imagem], concordo que o meu trabalho é bastante teatral" ("Hot Shoe", Março de 2008). "Não faço uso de equipamento digital. (...) prefiro (...) usar apenas os seus aspectos mais espontâneos [da produção fotográfica]" ("Arte e Arquitectura", Maio de 2009). No livro "Topologies", Edgar Martins diz: "No caso do meu trabalho, o que parece ser uma fotografia altamente controlada e manipulada não é senão um produto de ilusão. A ilusão do processo fotográfico. Isso é particularmente evidente em ‘The Accidental Theorist'. A maior parte das pessoas parte do princípio que estas imagens são manipuladas, ou talvez mesmo encenadas. A verdade é que não há qualquer trabalho de pós-produção, nenhuma manipulação na câmara escura ou no computador." Edgar Martins defende que estas afirmações foram feitas "no contexto de projectos muito específicos, como o livro ‘Topologies'" ("Time Out Lisboa"), mas elas surgem quase sempre como referências ao conjunto do seu trabalho.

"O que é criticável é ele ter insistido como argumento de defesa do trabalho que não havia nenhuma manipulação, é alguém assumir isso como um valor artístico", nota Sérgio Mah. "É uma falsa questão, em 2009, que um fotografo manipule as suas fotografias. Se falarem com Jeff Wall [artista canadiano cujas fotografias são encenadas], as primeiras dez coisas que ele diz sobre o trabalho não são isso. A fotografia é silenciosa e defende-se visualmente."

Margarida Medeiros concorda. "Ele não devia deixar que essa etiqueta saísse nas fotografias. Sei que é para evitar que as pessoas pensem: ‘Ah, isto é tudo Photoshop.' Mas o facto de ser Photoshop ou não ser, não é o que dá qualidade ao trabalho. Quando se diz ‘isto é só Photoshop' é porque a fotografia não tem interesse nenhum. É porque não convoca nada de novo, nada que nos faça reflectir sobre isso."

Emília Tavares: "Acredito que exista ainda uma pressão histórica, crítica, cultural e até de mercado em relação à manipulação. O fotógrafo não tem obrigação nenhuma de dizer se manipulou ou não. É um instrumento de criação como outro qualquer - como a obturação, a exposição, a velocidade, o tipo de luz, se usa flash ou não."

Quanto à série de fotografias produzidas para o "New York Times", a historiadora considera que "o sentido geral do trabalho não se perdeu" apesar das alterações introduzidas digitalmente. "A essência da imagem não foi modificada. Uma pessoa olha para aquelas imagens e o que é que vê? Desolação, abandono." Sérgio Mah também relativiza: "Ele não está a fotografar o particular, mas o geral. Não são fotografias sobre a casa na Rua 33, às 5h30 da tarde. Aquelas casas são todas as casas que estão abandonadas, são abstracções."

Para Emília Tavares, trata-se de "uma polémica de uma sociedade que está muito sensível em relação à sua própria crise". O britânico Paul Wombell, curador e membro do júri que atribuiu o prémio BES Photo a Edgar Martins, também refere que é um assunto delicado. "Se tivesse sido outra história, não directamente relacionada com isto... Por exemplo, se fosse sobre férias, não teria adquirido tanto peso. Mas a crise do ‘subprime' nos Estados Unidos, que resultou da manipulação do mercado financeiro, é talvez um dos acontecimentos mais importantes na América nos últimos dez anos."

Apesar da controvérsia, Wombell continua a afirmar que Martins foi "um vencedor meritório". "Não estávamos a avaliar se as fotografias eram manipuladas ou não. Não era um prémio de fotografia documental, é mais vasto do que isso. E se bem me lembro, algumas das outras obras que estavam a concurso apresentavam manipulações de várias formas diferentes."

Edgar Martins recusou ser entrevistado para o Ípsilon.