Pesquisar canções e/ou artistas

14 julho 2024

ABC do Sérgio Cabral


Certos historiadores guardam o privilégio de terem estado no momento histórico que historiografam e fazem da própria obra a historiografia precisa e o arquivo aberto dos acontecimentos. É o caso de Sérgio Cabral. Suas biografias, suas colunas, seus textos e livros de crítica de canção popular, mais do que registrar a história, assentam conhecimento e vivência. "Ele se tornou parceiro de compositores, amigo de músicos, diretor de espetáculos e produtor de discos. Esta proximidade gerou grande parte das histórias deste livro e foi o que certamente lhe garantiu escrevê-lo", diz Roberto Moura na quarta capa de ABC DO SÉRGIO CABRAL, volume de 1979 que traz "um desfile dos craques da MPB" - de "A de Alvaiade conta Portela" até "Z de Zé Kéti", passando por uma série de personalidades e entidades que compõem o espírito das ruas da cidade do Rio de Janeiro, matéria maior da obra de Sérgio Cabral. Dentre sua vasta produção, destaco ABC DO SÉRGIO CABRAL por seu texto precioso sobre Caninha (José Barbosa da Silva), segundo Cabral, "adversário cordial de Sinhô, Caninha dividiu com o Rei da Samba a honra de ser autor dos maiores sucessos populares da década de 1920". Quem mais escreveria sobre Caninha? E sobre Alvaiade? Sérgio Cabral tinha a generosidade de quem faz do arquivo de sua pesquisa um bem público, estimulando quem lê a pesquisar, a se interessar pelo narrado. Pode-se consultar o valioso arquivo físico de Cabral, mas e os causos, e a narração dos acontecimentos? Poucos sabem contar. Sérgio Cabral sabia.

23 junho 2024

Operação forrock


No livro OPERAÇÃO FORROCK, Felipe da Costa Trotta, Arthur Coelho Bezerra e Marco Antonio Gonçalves assinam individualmente três textos sobre a tradição e a renovação das sonoridades - importações e exportações - do Nordeste brasileiro. Sanfona, rabeca, samplers, Gonzaga, Science, cordel, sertão e litoral são analisados como aspectos de uma grande "zona de contato" sonoro. Nesse ambiente, "ainda que outros artistas tenham desenvolvido narrativas mais plurais e menos estereotipadas, ainda hoje o som da sanfona e o sorriso de Gonzaga representam uma certa unidade identitária regional, reconhecida dentro e fora dos limites da região", escreve Trotta. "É na cultura afro-brasileira que encontramos a origem do ritmo que mais caracteriza a participação da tradição popular na música de Chico Science - o maracatu", escreve Bezerra. "Para o cordel a poética é apreendida através da performance em que o afetivo, o subjetivo e o conceitual aparecem na simultaneidade criando uma relação entre intérprete e ouvinte, sendo mesmo a própria performance uma condição na narrativa", escreve Gonçalves. Performance parece ser a palavra-chave para se entender as narrativas de Nordeste que a canção popular engendra na cultura nacional ao longo do tempo. Épocas, estilos, tradições e rupturas se representam no corpo de artistas diversos, sempre em negociação complexa com o mercado, para dar conta de cantar o "ser nordestino", essa invenção sudestina ainda e sempre em processo de operação.

26 maio 2024

Oração para desaparecer


"Os lenços eram objetos preciosos porque continham um pequeno poema que declarava o amor. Levavam meses bordando à luz de velas, escolhendo os desenhos e os versos, quase sempre em galaico-português, porque ali já era quase outro país, o Norte de Portugal já faz fronteira com a Espanha e por isso a mistura de idiomas na poesia dos lencinhos". Esse parágrafo de ORAÇÃO PARA DESAPARECER diz muito da delicadeza com que Socorro Acioli cria a textura lírica e trágica de seu livro. Identidade e memória são reconstruídas com rigor e prazer. Acompanhamos o trajetória de Cida, a busca pelo seu duplo (seu passado?) animados por uma narrativa que faz da própria narração-de-si o mote ideal. O tempo narrativo é solapado a serviço do narrado. Isso é tão raro de se alcançar sem arestas. É bonito perceber quando isso acontece. E em ORAÇÃO PARA DESAPARECER acontece. As vozes em primeira pessoa se sobrepõem no tom correto de criar o palimpsesto da história. "A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. (...) Estar vivo é ser palavra na boca de alguém", lemos no final do primeira parte do livro, quando Cida nos conta como foi desenterrada. É no jogo das palavras-que-falam-de-si que as personagens vivem enquanto enredo no mundo. E a língua, o cruzo das línguas é fundamental nesse processo. Assim, como várias manifestações da fé. ORAÇÃO PARA DESAPARECER resgata um episódio histórico esquecido, convocando os leitores a refletir sobre a tensão entre os povos originários e a Igreja Católica.

19 maio 2024

Chico Buarque do Brasil


Dentre os livros que analisam a obra do autor de "Geni e o Zepelim", CHICO BUARQUE DO BRASIL se destaca. Profundo conhecedor da obra buarqueana, Rinaldo de Fernandes organiza textos com enfoques diversos. Antonio Candido, Regina Zappa, José Saramago, Cecilia Almeida Salles, Augusto Boal, Regina Zilberman, Frei Betto compõem um coro de quase 50 autores debruçados sobre as canções, o teatro e a ficção de Chico, construindo seu lugar de intérprete do Brasil. Amador Ribeiro Neto, por exemplo, cruza o poema "Cidade City Cité" de Augusto de Campos com o disco "As cidades", lançado por Chico em 1998 - "num e noutro o caleidoscópio cotidiano de seres e coisas da cidade descatam-se com os contornos de uma lente objetiva ou angular", escreve Ribeiro Neto. Por sua vez, Sônia Ramalho aponta que "o duplo pastiche autobiográfico veiculado pela circularidade romanesca torna possível a "Budapeste" problematizar a noção de individualidade autoral inerente ao gênero autobiográfico clássico". Friccionando tradições e promovendo rupturas, na palavra escrita, ou encenada, ou cantada, a obra de Chico Buarque recebe aqui a atenção justa. Lançado nas comemorações pelos 60 anos do artista, CHICO BUARQUE DO BRASIL interpreta o intérprete. Para o organizador do livro, "num país deselegante, indiscreto e pouco generoso com boa parte de sua população, Chico é coro do contrário - ainda". E quem há de negar?

12 maio 2024

O belo caminho

Em O BELO CAMINHO Gary P. Leupp apresenta a "história da homossexualidade no Japão". É muito interessante perceber o que a "ocidentalização" do Japão fez com os costumes daquele país que nem o termo "homossexual" (ou parecido) usava, dada a diversidade de práticas e jogos eróticos possíveis entre pessoas do mesmo sexo, notadamente, homens. E nisso as culturas se irmanam, no patriarcado, na brotheragem que incensa de hipocrisia a moral e a ética. O rico trabalho de pesquisa em arquivos de documentos e imagens faz do trabalho de Leupp uma obra importante e rara, por desvelar de modo tão direto essa história pouco conhecida. Afinal, "é comum sociedades atribuírem a gênese da sua homossexualidade ao estrangeiro: os hebreus associavam-na às culturas pagãs egípcias e canaanitas; os gregos imputavam sua pederastia aos persas; os europeus medievais consideravam a sodomia um pecadilho árabe trazido pelos Cruzados; e os ingleses renascentistas estavam convictos que o 'vício inominável' chegara às ilhas por meio de, dependendo da conjuntura das suas relações internacionais, Castela, Itália, Turquia ou França", anota Leupp, sob tradução de Diogo Kaupatez. Mas "como explicar o surgimento e a difusão de uma cultura nanshoku monástica, tamanha a fobia homossexual dos textos budistas continentais?", pergunta-se o autor de O BELO CAMINHO. Nanshoku é termo utilizado para referir-se a relações homossexuais entre homens, traduzido como “cores masculinas”. O livro percorre respostas, desde a "tolerância social" até a "construção de gênero", passando mesmo pela "comercialização do nanshoku", presente nas tradições monástica, militar, burguesa. Leupp mostra como "o conceito de nanshoku-zuki cedeu lugar ao alemão urning, indivíduo que padecia de desordem psicológica. Assim, os homens se tornaram pouco propensos a conhecer, e muito menos experimentar, o prazer homossexual". O desdobramento foi a marginalização. E nisso o livro conta bastante a história do desejo sexual também em nosso cultura.

05 maio 2024

Fremosos cantares


O livro FREMOSOS CANTARES é material primoroso para quem quer imaginar com rigor e prazer o som da lírica medieval galego-portuguesa, braço e berço importante de nossa lírica. A professora Lênia Márcia Mongelli aciona o gaio saber sonoro de uma poesia que se realizava na voz, no canto, na presença física de quem cantava e de quem ouvia. Em relação à poesia trovadoresca, é sempre importante destacar o caráter coletivo das cantigas e a tensão entre o indivíduo e sua subjetividade. Da interação entre música, poesia e performance, surgia a formação de um "eu coletivo", de um "corpo místico", nas palavras do professor João Adolfo Hansen, ao pensar as letras coloniais brasileiras, por exemplo. Algo que nos é difícil acessar hoje, tamanha a nossa individuação. Fato é que, como se sabe, o virtuosismo era elemento constitutivo do poeta trovador, o que, por vezes permitia certa exteriorização dos estados de espírito, conforme observado por Mongelli. Para a autora, O lirismo trovadoresco galego-português não é, evidentemente, uma poesia 'confessional'. Não se pode esperar encontrar nela um 'eu' individual expresso com a densidade introspectiva romântica ou com o nível de verticalidade psicológica dos simbolistas ou com a consciência moderna de que fazer é revelar. Contudo, é preciso matizar os limites do chamado 'eu coletivo' medieval". Antologizando, comentando, corporificando, cotejando e singularizando vozes de um coro (hoje) mudo de poemas da vasta poesia desse período, FREMOSOS CANTARES abre nossos ouvidos.

28 abril 2024

De uma a outra ilha


"(...) há de se impelir na imaginação o movimento que conduz o homem à ilha. É só em aparência que um tal movimento vem romper o deserto da ilha; na verdade, ele retoma e prolonga o impulso que a produzia como ilha deserta; longe de compromete-la, esse movimento leva-a à sua perfeição, ao seu apogeu. (...) A ilha seria tão-somente o sonho do homem, e o homem seria a pura consciência da ilha", escreveu Gilles Deleuze em "Causas e razões das ilhas desertas" (trad. de Luiz Benedicto Lacerda Orlandi). Evoco Deleuze para comentar o poema-livro DE UMA A OUTRA ILHA, de Ana Martins Marques, não apenas porque a poeta utiliza aquilo que o filósofo chamou de “diferença e repetição”, basta observar os vários deslocamentos de trechos, versos, temas dentro do poema-livro (de "dinheiro, celular, cigarros" do refugiado, às apropriações de matérias jornalísticas, de textos de Anne Carson, de versos de Safo), mas porque é nessa verve metalinguística inter e intratextual que o texto de Marques se realiza. Colchetes, travessões, itálicos, espaçamentos, asteriscos, incorporação da linguagem jornalístico-documental arquivam (porque re-velam) a voz cuja partitura se perdeu; "toda a música de Safo / se perdeu", lemos em Anne e em Ana. Para tanto, DE UMA A OUTRA ILHA justapõe temporalidades (na montagem dos pedaços do óstracon, suporte do poema sáfico, metáfora das subjetividades dos exilados e refugiados de agora), efetivando "o trabalho dos séculos: (...) disfarçar que o mundo é pobre / sobrepondo-lhe / adereços". Mas não para fugir do "real", ao contrário, expô-lo e comover, exigindo e propondo a ação de quem lê. O que conduz a poeta à ilha não é o que conduz o refugiado à ilha. A consciência ética e estética dessas conduções suplementares está no meio do livro-poema, quando Ana Martins Marques elenca o que se perde ao sobreviver. O apogeu de DE UMA A OUTRA ILHA está em ser (fazer quem lê experimentar) a "porcelana trincada" que todo poema deveria ser, ao exigir de quem lê cuidado e atenção com o deserto da língua e da linguagem poética viva.